terça-feira, 29 de maio de 2012

Manuel Maria Barbosa du Bocage



«O maior poeta do século XVIII português foi Manuel Maria de Barbosa du Bocage, émulo de Camões na vida e na obra. Nasceu em Setúbal, em 1765. Cedo, apaixona-se por Gertrudes (que aparece como Gertrúria em sua poesia), mas resolve alistar-se na Marinha de Guerra, em 1783. três anos depois, embarca na nau "Senhora da Vida", em viagem para Goa. Faz escala no Rio, onde se regala em festins e amores tropicais. Chegado à Índia, o tempo começa a correr-lhe bem: é promovido a tenente e mandado a Damão, mas deserta, levado por amavios de baixos amores. Em 1789, segue para Macau e, no ano seguinte, para Lisboa. Ao chegar, sabe com tristeza que Gertrudes se casara com seu irmão. Desgostoso, entrega-se a uma vida desregrada e boémia, ao mesmo tempo que frequenta a Nova Arcádia. Em 1797, é preso e condenado a receber doutrina dos oratorianos. Livre, passa a viver de traduções e tarefas similares. mas novas desgraças o espreitam, como a doença, paixões infelizes, tormentos da sensibilidade; recolhe-se ao leito, à espera do fim, que chega a 21 de Dezembro de 1805. Morre na miséria e arrependido. Seu pseudónimo arcádico era Elmano Sadino, formado com as letras do seu prenome e do rio Sado, que banha Setúbal.
Em sua vida, Bocage publicou Idílios Marítimos recitados na Academia das Belas-Artes de Lisboa (1791) e as Rimas (3 vols., 1791, 1799, 1804). Postumamente, com o título de Obras Poéticas, saíram mais dois volumes (1812 e 1813), e de Verdadeiras Inéditas Obras Poéticas, um. volume (1814). Em 1853, Inocêncio Francisco da Silva publicou-lhe as Poesias, em seis volumes, considerada a melhor edição do espólio poético bocageano.
Existem dois Bocages: o que o vulgo fixou através de anedotas, verdadeiras algumas e falsas outras, mas todas raiando na obscenidade grosseira, e o que a tradição literária nos legou.
Este é que importa, pois o primeiro segue trajectória secundária e infensa a qualquer configuração, visto o povo atribuir-lhe todos os ditos picantes que, não tendo paternidade conhecida, devem forçosamente pertencer a alguém. Desse ângulo, seu nome tornou-se mítico ou ao menos proverbial, decerto representando um tipo chocarreiro universal.
O segundo Bocage escreveu uma vasta obra poética fraccionada em dois sectores fundamentais: o satírico e o lírico. Quanto ao primeiro, Bocage alcançou ser estrela de primeira grandeza, ao lado dum Gregório de Matos, graças ao temperamento agressivo, impulsivo, cortante, amparado no dom da improvisação feliz e certeira. Contudo, a sátira ocupa lugar menos relevante em sua obra, seja porque de cunho pessoal e bilioso, seja porque dura tanto quanto o acontecimento que lhe dá causa e sentido. Exemplo característico do seu poderio satírico é a "Pena de Talião", em resposta a José Agostinho de Macedo.
Todavia, é na poesia lírica que o talento bocageano se realizou de modo particular. Cultivou a lírica elegíaca, a bucólica e a amorosa, exprimindo-as em idílios, odes, epigramas, cantatas, elegias, canções, epístolas, cançonetas, sonetos, etc. nos poemas longos, salvo contadas excepções, Bocage não se realiza plenamente: talvez porque, neles, fosse compelido a enquadrar-se dentro do convencionalismo neoclássico, ou porque exigissem um fôlego muito mais amplo do que lhe era permitido pela baixa rotação de seu mundo interior. De qualquer forma, tais composições inibiram, em vez de estimularem, o voo poético a Bocage: as normas arcádicas enrijeciam-lhe demasiadamente o verso e coarctavam-lhe a inspiração.
Os sonetos contêm, na verdade, o mais alto sopro de seu talento lírico, a tal ponto que Bocage vem sendo invariavelmente considerado um dos três maiores sonetistas da Língua, ao pé de Camões e Antero. É do primeiro que aprende a lição referente ao corte do soneto, mas acrescenta-lhe.novos dados de pessoal e singular intuição lírica: certo irracionalismo; estertores, confissões dramáticas de experiências vivas na carne lacerada, utilizando uma adjectivação subjectiva, diabólica, teatral, próxima da alucinação ("negras fúrias", "baça tristeza", "voraz dente", "mortíferos venenos", etc.); um ar anti-discursivo, que por vezes descamba no prosaísmo ou em soluções quotidianas e coloquiais. Com efeito, Bocage desembaraça a poesia, notadamente o soneto, das peias que a sufocavam antes, emprestando-lhe uma dicção fluente, vizinha da fala diária, obediente a uma lógica da emoção, que organiza os versos numa ordem directa, natural, em oposição à sintaxe arrevesada e tortuosa que florescia anteriormente, inclusive na pena de um Camões. Nítido rasgo de autonomia, aglutina-se com perfeição à tendência para exprimir uma sensibilidade encravada na "reportagem" do dia-a-dia, mas fascinada pela contemplação das alturas. Dessa polaridade nasce a tensão que torna o lirismo bocageano o mais original e forte de seu tempo, e prelúdio da modernidade romântica. Mais do que o restante da obra, os sonetos documentam-lhe a vida por dentro e por fora: testemunhos de suas andanças e tormentos de alma, constituem verdadeiras páginas de um diário íntimo, peculiaridade que os torna predecessores dos sonetos metafísicos de Antero, pelo pessimismo intrínseco e pela constante presença da morte.
Daqui decorre a primeira nota marcante da poesia lírica de Bocage: o seu pessoalismo. Com efeito, superando as regras e as coerções literárias e sociais ligadas ao movimento arcádico, a poesia bocageana identifica-se por um rebelde libertarismo emocional, às vezes violento e gritante, às vezes calmo e idealista. É fácil compreender que esse timbre de impulsiva origi-nalidade, fruto de especiais condições de temperamento, educação e. vida, guarda uma grande novidade para o tempo: talvez se possa dizer que Bocage anuncia o fim dos falsos pressupostos de nobreza artística, o fim da hipocrisia em arte (evidente em toda a cultura anterior, dissociada do homem em particular e em geral, e escrava de regras fixas e hipócritas, porque impedia que indivíduo e artista formassem uma única entidade na mesma pessoa).
Entretanto, como era inevitável, Bocage deixou-se contagiar pelo movimento literário vigente, mas com uma sinceridade de tal modo autêntica e convicta que lhe permitirá mudar de rumo no instante preciso. Por ser uma adesão de dentro para fora, quando foi o momento de buscar novos caminhos, não titubeou em fazê-lo, embora tanto lhe custasse, pois assumiu atitudes desabusadas que acabaram provocando impactos dolorosos nos padrões burgueses do tempo. Em resultado dessa metamorfose, pode-se falar em duas fases, ou maneiras, percorridas pela poesia lírica de Bocage.
A primeira fase, ou maneira, da poesia bocageana marca-se pelo influxo maior das regras e convenções trazidas pelo neoclassicismo arcádico, sintetizadas no culto do Fingimento e da Dependência, como o próprio poeta declara no soneto "Incultas produções da mocidade", que utilizou como uma espécie de prólogo às Rimas. Então, amargando amores infelizes (incluindo o desgosto de ver Gertrudes casada com seu irmão Gil), o poeta cerca-se de imagens mitológicas e clássicas, numa flagrante transposição de seus infortúnios: o mundo povoa-se de alegorias e o poeta arcadiza seus sentimentos: "Olha, Marília, as flautas dos pastores / Que bem que soam, como estão cadentes! / Olha o Tejo, a sorrir-se! Olha, não sentes / Os Zéfiros brincar por entre as flores?".
Concomitantemente, vão-se evidenciando longos debates entre a Razão (que o levaria para o bem) e o Sentimento (que o levaria para desatinos), num movimento oscilatório que resulta por certo de profundas causas pessoais e de causas gerais, pois começava a descombinar com os novos ares culturais de influência anglo-saxónica o gélido artificialismo arcádico. Não há dúvida que muito da contenção interior própria desse primeiro Bocage vem de ele, impelido pelo Fingimento e pela Dependência, ter aceitado o jugo do racionalismo clássico: não obstante o fizesse com sinceridade, "errou" ao violentar-se interiormente, e disso se penitenciará no futuro. Di-lo, já nesse estágio, a "dilaceração" permanente em que anda, agitado por uma angústia emocional que promana não só do seu caso amoroso, mas também da luta empreendida para quebrar a crosta da afectação clássica e permitir que venha à luz todo o seu alanceado mundo interior. Portanto, apesar dos condimentos clássicos já petrificados e de função mais decorativa, observa-se o "eu" do artista a impor-se tumultuoso e quente contra a impessoalidade, e mesmo a teatralidade e o fingimento, da poesia arcádica. É que o Fingimento e a Dependência se referem à sujeição fortuita de Bocage ao doutrinal arcádico: nos sonetos em que celebra Marília (por exemplo: "Marília, nos teus olhos buliçosos"), o "festival contentamento", provindo do amor pela musa e pelo encontre com a Natureza, esconde ou adia o sofrimento íntimo e verdadeiro do poeta, expresso noutros poemas (inclusive dedicados a Marília, como o que se inicia com o verso: "Minha alma se reparte em pensamentos"), em que a pose arcádica se dissipa em favor da confissão atormentada, depressiva e lúgubre.
Superadas as ténues sujeições neoclássicas, Bocage põe-se diante dum espelho, sozinho, fazendo-se espectáculo de si mesmo. Poesia da confissão e da emoção, eis o que emerge da nova equação armada: surgem agora as notas mais agudas e os temas carregados de mais dramaticidade na trajectória literária bocageana. Ao sentimento de desamparo por falta de afectos seguros e de certezas religiosas para substituir o Fingimento da juventude, soma-se a grande tragédia da solidão inexorável em face da Natureza e do Mundo. A solidão existencial e profunda do género humano é agora tema constante, a cuja dolorosa especulação se acrescenta a sondagem no mistério da morte. Esta, torna-se-lhe ideia fixa e tema igualmente contínuo em sua poesia: e a ela se junta a descoberta e fruição do mundo tenebroso dos horrores, novidade que o seu auto-escavamento frenético desvenda masoquistamente (cf. soneto "Õ retrato da Morte!, ó Noite amiga").
Poesia nocturna e soturna, correndo na esteira de igual tendência da poesia inglesa contemporânea, de que Young era figura de primeira plana, liga-se a temas de pessimismo e fatalismo: para Bocage, o Fado, entendido como irracional predestinação, determinou-lhe uma vida inteira de inarredáveis sofrimentos morais e físicos.
É agora, nessa poesia madura e de auto-análise, que Bocage alcança o máximo de seu potencial lírico, graças ao singular poder transfigurador que não recorre às ficções mitológi-cas nem às regras clássicas, mas, sim, procura expressões novas para transmitir os achados interiores que dramaticamente vai efectuando no correr do tempo.
Tem-se a poesia da confissão, da carpidação, do arrependimento, resultante da contempla-ção do "eu" a si próprio, numa dor perene, acima de qualquer contingência externa. Aqui, Bocage atinge acentos típicos da mais elevada poesia, pela purificação da sensibilidade, pela tensão dramática, pela sinceridade autobiográfica do sofrimento moral transposto em arte, pela sondagem interior processada quase sem os entraves da consciência, e, por fim, pelo encontro feliz de soluções expressivas que não ficaram totalmente desconhecidas ao longo do século XIX. A grandeza dessa poesia demonstra-se pelas epístolas a Gertrúria, a Josino e a Ursulina, e especialmente pelos sonetos, dos quais valia a pena lembrar os dois que levam o título de "Adeus, ó mundo, ó natureza, ó nada".
Note-se, ainda, que o lirismo de Bocage se elabora entre duas forças complementares: o subjectivismo ególatra, que o arrasta a revelar eruptivamente seu "eu" angustiado, e o uni-vetsalismo, que não advém de influências clássicas, senão do desenvolvimento, da amplifi-cação ao nível cósmico, das torturas interiores. Nesse pólo, o "eu" volve-se "Eu" ou "Nós" à custa de levar a auto-sondagem ao limite extremo. De onde Bocage permanecer lírico, embora de superior grandeza, quando apenas oferece ao leitor o espectáculo tenebroso de seu "eu", e ascender para a dimensão de épico quando universaliza, por meio da reflexão, da "sentença" que coroa os sonetos, os conteúdos de sua individualidade encarcerada. A segunda faceta assinala a presença da Razão, a primeira, do Sentimento: como este vence aquela, a excursão épica somente se realiza até certo ponto, e o poeta avança para o Romantismo.
Facilmente se conclui que o Bocage dessa fase ou maneira é todo ele pré-romântico, e é assim que deve ser considerado. Para ser integralmente romântico, faltou-lhe caminhar um passo mais e libertar-se por inteiro de sua formação neoclássica: ter-lhe-ia sido possível? E progredindo ainda um pouco, não significaria a "solução" de seu conflito íntimo e a redução da temperatura dramática e mesmo trágica de sua poesia? Não virá a grandeza que sua poesia também dos paradoxos em que mergulhava o poeta? Não incidirá nos transes de quem sabe que abandona um mundo sem poder aceitar totalmente o outro, a "marca" da poesia bocageana?
Em qualquer hipótese, émulo de Camões ("Camões, Grande Camões, quão semelhante / Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!"), Bocage alcançou ser dos Maiores poetas da Língua Portuguesa. E um cotejo entre ambos deveria fatalmente acusar os seguintes aspectos: Bocage é o primeiro poeta da Literatura Portuguesa que traz a poesia lírica para o plano terreno, quotidiano e burguês. De pés cravados no solo, agitava-o uma doença cultural que principiava a contagiar os espíritos mais sedentos de novos caminhos: a ânsia metafísica. Com efeito, era um sequioso de metafísica impossibilitado de superar o fascínio que em sua cerebração e sensibilidade exerciam os estímulos da vida física. Ao contrário, Camões migrava em esferas metafísicas, incapaz de ajustar-se ao mundo contingente; na verdade, mesmo quando se sentia "bicho da terra, vil e pequeno" sua óptica permanecia transcendental. Assim, a poesia de Bocage irrompe das vísceras, do sangue, dos ossos, e estribada em sentimentos menores que procuram ardorosamente escapar de seu círculo de fogo e ascender para as regiões abstractas. Em suma: para Camões a terra significava a dimensão do existir, ou do não-ser: para Bocage, seu território próprio e definitivo; e para o primeiro, os espaços sobrenaturais constituíam a morada do ser, enquanto para o outro se afiguravam o símbolo perfeito do inatingível.
Quando Bocage morreu, o solo já estava preparado para o advento das verdades novas trazidas pelo Romantismo. Se o seu ensinamento não foi imediatamente aproveitado, se sua obra não foi de pronto erguida ao plano em que se encontra hoje, é porque sua língua afiada tinha ganho vários inimigos, e o despeito, a inveja e a calúnia tinham feito o resto. No entanto, a obra bocageana tornou-se a grande ponte de ligação entre o melhor da poesia quinhentista, a de Camões, e a que vingaria no Romantismo, caracterizada essencialmente pelo signo da revolta e da mais profunda insatisfação, de que ele, Bocage, foi o primeiro a dar sincera medida e exemplo.»

In http://books.google.pt/books?id=xcQYSXj0xN0C&pg=PA108&lpg=PA108&dq=bocage+massaud+mois%C3%A9s&source=bl&ots=mud259WZHu&sig=wC7KJPoYEmujxDVMAnXUrQ7FwWI&hl=pt-PT&sa=X&ei=0dvET57_L4PA0QW6mrycCg&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false (29/5/2012)

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