terça-feira, 18 de junho de 2013

Ficha "O Gebo e a Sombra"

Lido em Entre Fialho e Nemésio, Óscar Lopes. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1987: «O Gebo e a Sombra" destaca-se bem entre toda a obra de Raul Brandão pelo consumado da sua estrutura, que aliás utiliza e refunde tipos humanos  da Farsa ou de Os Pobres. Em vez de uma justaposição de fala-sós, estamos aqui perante uma linha bem una de acção, acidentada por bruscas mutações ou, como dizem as poéticas clássicas, de peripécias surpreendentes e todavia integráveis numa lógica significativa e verosímil: no primeiro acto, o Gebo e a nora, Sofia, escondem à mulher dele que o filho, há vários anos ausente, faz uma vida de ladrão e presidiário, e este último, João, aparece ao velho no desfecho; no segundo acto, João, apesar da resistência de Sofia, rouba a mala com dinheiro que o velho trouxera do mísero emprego, onde, sabe-se depois, só por piedade o mantêm; no terceiro, o Gebo entrega-se à polícia como se fosse o ladrão; no quarto acto, vemo-lo regressar do presídio, depois de cumprida a pena, desmoralizado, e partir com o filho para a vadiagem. A velha exige torturantemente, nos primeiros actos, que o Gebo a iluda, que lhe minta, lhe inspire sonhos acerca do filho, e essa tortura de um velho exausto, consumido de preocupações e troçado pelo rapazio, renova-se a cada incoerência e a cada lapso nas esperanças que inventa ao longo do primeiro acto; no entanto a velha acaba por confessar, no quarto acto, que tudo sabia desde o princípio, mas não podia prescindir do sonho: "Há mentiras que precisam de gritos e de alguém que as defenda até ao último extremo." Como tema central, além do da mentira necessária, há estoutro, formulado numa pergunta de Sofia: "Neste mundo atroz, neste mundo onde não há nada a esperar nem piedadede nem justiça, só os desgraçados é que têm de cumprir o seu dever?" As soluções polares, que o gebo adopta sucessivamente na peça, estão na sua essência pura representadas por Sofia e João. Sofia sutenta o postulado religioso ("Há talvez outra coisa maior que eu não conheço mas pressinto.") de uma sobrevivência e sanção sobrenaturais; João representa a solução anarquista do egoísmo individual sem peias morais, segundo o critério de que os oprimidos resignados e justos não passam afinal de almas mortas: "Antes viver num espanto e depois morrer!" É claro que a exigência da mentira dourada por parte da mulher de gebo está na base, afinal bem comezinha e sublimadamente egoísta, dessoutro sonho, mais abstracto, a religião de Sofia. Entre as duas soluções aparentemente definitivas, o ódio invejoso de Candidinha para com os que lhe dão esmola ("Até fico doente quando as coisas lhe correm bem!") e as veleidades do "artista" Chamiço, pobre músico de feira, vêm adensar ainda mais a tensão dramática irresolúvel de uma miséria que (ideia persistente do autor) já não pode crer nas consolações religiosas tradicionais, nem por outro lado se satisfaz com um individualismo extremo, ou anarquista.» (pp. 349-350)
 
Em seguida, Óscar Lopes faz uma breve menção a uma das temáticas mais importantes em Raul Brandão, e também em O Gebo e a Sombra: «(...) a da pergunta metafísica sobre o "para quê" do sofrimento.» (p. 350). Em seguida , afirma «A personagem-tipo deste egoísmo é a Candidinha (..) A sua tragédia de desgraça pobre e sem escrúpulos, cujo maquiavelismo se frustra perante os obstáculos insuperáveis da miséria (...)" (p. 366).

domingo, 2 de junho de 2013

A questão do paralelismo perfeito nas cantigas de amigo

«A cantiga de amigo, que, como sabemos, resulta do aproveitamento estético de uma tradição lírica galego-portuguesa, caracteriza-se por uma estrutura estrófica e rítmica que aproxima a poesia da música. Com efeito, a cantiga de amigo de molde tradicional obedece à técnica paralelística: é uma paralelística perfeita ou pura. Nestas cantigas, os vários elementos versificatórios – pausas, ritmo e rima – estão subordinados a um jogo de simetrias, em que predomina a repetição, como princípio estruturador.

Assim, a cantiga é constituída por dois coros que cantam alternadamente, mas o segundo coro repete, pelo processo do leixa-pren, a estrofe cantada pelo primeiro coro, com alteração da palavra rimante, pois alternam as rimas assoantes, em i e a (amigo/amado, saído/passado" etc.). E cada coro retoma, no início de nova copla o último verso que canta, repetindo-o integralmente, e acrescenta novo verso, a seguir repetido pelo mesmo processo. A cantiga paralelística pura é formada de três pares de coplas. Eis, esquematicamente representada, a técnica paralelística: A Br/ A'B'r/BCr/B'C'r/CDr/C'D'r; ou, transcrevendo de outro modo: aa'Wbb'R/a'a''R/b'b"R... O refrão acentua a sugestão musical da cantiga e, geralmente, é sintáctica e semanticamente independente do corpo da copla, embora, portador de valor imagístico, concretize o estado de alma da moça ou defina o tema da cantiga.

(...)

No entanto, nem todas as cantigas de amigo apresentam esta estrutura' há as cantigas de paralelismo atenuado, e as de refrão, geralmente formado de dois versos, e que pode aparecer intercalado na copla, como marca de influência culta, ou servir-lhe de remate, como é próprio do lirismo popular.

O paralelismo inspira, porém, grandes poetas, como D. Dinis, que soube valorizar esteticamente o processo adoptado nas cantigas tradicionais, deixando-nos composições que reconstituem, por meio de hábil técnica, a espontaneidade e frescura do lirismo popular. E Gil Vicente elaborou também literariamente muitas cantigas paralelísticas com que soube animar os seus autos pastoris, e de que se serviu para pôr em cena, com vivacidade, os ambientes rústicos em que se movem muitas das suas personagens.

No entanto, a cantiga de amigo não se encontra necessariamente ligada à vida do campo, pois enquadra-se frequentemente num meio burguês, reflectindo o ambiente doméstico e familiar, marcado pela presença feminina, visto que a menina, na ausência do chefe de família, vive sob a tutela da mãe, embora por vezes se rebele contra as suas imposições. Assim a cantiga não exprime só o drama sentimental da moça (o que, em linguagem trovadoresca, se chamava «cuidado»), provocado pela ausência do amigo, como também testemunha as condições familiares da época, em que a mãe possui autoridade e exerce vigilância sobre a filha.

Assistimos, portanto, à intervenção da mãe, a quem a moça pede licença para ir falar com o namorado (Mia madre, venho-vos rogar) e toma como confidente da sua paixão (Madre, passou per aqui um cavaleiro); com ela desabafa a raiva ou «sanha», provocada pela traição do namorado (Ai madre, ben vos digo), ou confessa-lhe a fidelidade amorosa, que a leva a aspirar à morte, embora reconheça que foi traída (Non chegou, madr', o meu amigo). E também ouvimos os conselhos da mãe, que tenta chamar a filha à realidade, convencendo-a da indiferença do amigo (Filha, o que queredes ben), embora se encontrem mães que preparam o encontro dos namorados e protegem os seus amores, exigindo, porém, o maior sigilo e discrição (Pois vós, filha, queredes mui gran ben).

Nem só à mãe se dirigem as confidências da Moça: também as amigas (nesta época a amiga recebia, por vezes, o tratamento familiar de «mana») partilham da sua alegria, provocada pelo regresso do amigo (Amigas, o que mi quer ben), ou pela certeza de ser amada, o que pode suscitar comentários irónicos e azedos da confidente (Amiga, vistes amigo); e com a amiga desabafa a dor pela distância a que o amigo se encontra, ao mesmo tempo que lhe mostra os presentes de noivado, então chamados «dõos» ou «dons de amor» (Quand' eu subi nas torres sobe-lo mar), ou solicita companhia para ir ao encontro do namorado que andava à caça (Vaiamos, irmana, vaiamos dormir). Mas à falta de menina confidente dialoga com a Natureza, o que constitui uma característica fundamental do lirismo galego-português interroga as ondas e pede-lhes notícias do amigo (Ondas do mar de Vigo) e, na Primavera, no pinheiral em flor, dirige o mesmo pedido ansioso às flores (Ai flores, ai flores do verde pino), as quais, humanizadas por tão grande desgosto, a consolam (Vós me perguntades polo vosso amigo).

Assim, a cantiga de amigo constitui essencialmente a expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, liberta dos convencionalismos a que obedece a cantiga de amor.»

Maria Ema Tarracha Ferreira, Poesia e Prosa Medievais, Ulisseia

sábado, 1 de junho de 2013

Cantigas de escárnio e maldizer, pela Eva S.

Caraterísticas das cantigas de escárnio e maldizer:

  • Criticam os vícios e os defeitos dos outros

  • Os trovadores aplicam os seus dotes poéticos à crítica individual e social

  • São feitas de forma encoberta - cantigas de escárnio

  • A vítima da crítica é identificada - cantigas de maldizer

  • Têm valor documental- revelam qual a reação face aos acontecimentos e situações

  • É frequente serem musicadas


(texto com alterações)

As cantigas de amor, pela Marta



    As cantigas de amor são trazidas da Provença, através de: séquitos de  princesas; trovadores que andavam de castelo em castelo; agrupamentos internacionais, onde se reuniam peregrinos de vários paíseso; cruzadas.
    As cantigas de amor (onde os trovadores se dirigem à sua amada ou aludem a ela) consistem num elogio, onde o amor cortês se manifesta com "mesura" (o trovador respeita a distância e não revela a identidade da dama) e funciona como uma vassalagem amorosa. São frequentes as queixas pela "coita" de amor, devido aos rigores, indiferença ou amor não correspondido da dama.
  As cantigas de amor têm um caráter convencional e cortesão, demonstrando um requinte sentimental de feição cortês. Elas representam um conceito baseado no fingimento de amor.
   No contexto português - ou peninsular - as cantigas de amor modificam-se e nacionalizam-se: tornam-se mais "ibéricas": formalmente, são menos rígidas, e, no que diz respeito ao conteúdo, o amor cortês torna-se mais próximo da paixão sentimental. 
 
(texto com alterações)

As cantigas de amigo, pela Sónia

   As cantigas de amigo são de origem popular, com marcas da literatura oral, nomeadamente: as reiterações, o paralelismo, o refrão e o estribilho.
Este tipo de cantiga teve as suas origens na Península Ibérica. O eu-lírico é uma mulher que canta o seu amor pelo amigo, muitas vezes em ambiente natural e em diálogo com a sua mãe ou amigas.
   A figura feminina é desenhada como uma jovem que se inicia no universo do amor, lamentando por vezes a ausência do amado.  A jovem aparece-nos inserida num ambiente doméstico e burguês.Trata-se, pois, de uma donzela (uma rapariga solteira), pertencente aos estratos médios do povo. Frequentemente, as cantigas de amigo caraterizam-se por constituirem um desabafo da donzela. Este desabafo é feito à mãe, à irmã mais velha, à amiga, à natureza ou aos santos da sua devoção.
    A natureza apresenta uma espécie de vida própria. É uma testemunha viva das alegrias e tristezas da donzela. Por vezes a sua personificação é total. É comum ser representada pela fonte, pelo rio, pela praia ou pelo campo.
   A comprovar a antiguidade deste tipo de cantigas, temos os arcaísmos que os trovadores conservam.
 
(texto com alterações)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

O essencial sobre Ruy Belo...

... foi selecionado e escrito por Luís Miguel Queirós no Ipsílon (consultado e transcrito sem contemplações em 20/5/2013)

«A morte em preparaçãoLendo o que escreveram ensaístas (alguns deles também poetas) de várias gerações, como Eduardo Lourenço, Gastão Cruz, Manuel Gusmão ou Pedro Serra, presentes neste colóquio, ou ainda Joaquim Manuel Magalhães, previsivelmente ausente, percebe-se que há amplas zonas de consenso, e desde logo no comum reconhecimento da inequívoca relevância da poesia de Ruy Belo. Todos realçam também a singularidade de uma obra poética sem antecessores, companheiros de jornada ou sucessores demasiado óbvios, algo que não é evidentemente incompatível com o que Ruy Belo ostensivamente deve a vários poetas, e antes de todos a Fernando Pessoa. "Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais", diz um verso de "Homem de Palavra[s]".

A dimensão barroca desta poesia, o seu assombroso virtuosismo versificatório - que o torna de tradução quase impossível, o que pode ajudar a explicar que este "colóquio internacional" seja, no essencial, um colóquio luso-brasileiro -, a sua atenção ao real quotidiano, ou ainda as suas preocupações políticas, especialmente óbvias no período que vai de "Boca Bilingue" (1966) à antologia "País Possível" (1973), são, inventariando-as um pouco ao acaso, outras características que os sucessivos leitores de Ruy Belo não puderam deixar de notar. E falta ainda referir o mais óbvio ponto de acordo: esta é uma poesia cujo motor é a morte. "Tenho uma vasta obra publicada/ e tenho a morte em preparação", escreve o poeta, também em "Homem de Palavra[s]".

As divergências começam no modo como estas e outras marcas da poesia de Ruy Belo, razoavelmente indiscutíveis em si próprias, foram sendo diversamente lidas ao longo das últimas décadas. E estas variações, que parecem por vezes resumir-se a questões de detalhe, tiveram o efeito de fazer da obra de Ruy Belo uma espécie de reino flutuante na geografia da poesia portuguesa do século XX, que, por acção de diferentes correntes, tanto se encosta a alguns dos seus vizinhos geracionais dos anos 60, como desliza ao encontro dos poetas que se revelaram nos anos 70, e chega mesmo a entrever a linha de costa desse outro mundo a que se chamará pós-modernidade.

Pedro Serra, num livro que reúne vários ensaios sobre Ruy Belo - "Um Nome para Isto" (2004) -, nota que "o influxo de Ruy Belo nas décadas subsequentes não pressupõe escrever contra ele". E poderia acrescentar-se que isto é verdade não apenas no sentido de que autores com poéticas aparentemente tão divergentes como Gastão Cruz ou Joaquim Manuel Magalhães puderam senti-lo como genuinamente próximo, mas também no sentido em que a sua poesia não é, como as de Pessoa ou Herberto Helder, dessas que podem assombrar um poeta mais novo a ponto de o fazer recear pela originalidade da sua própria voz.

Oscilações canónicasNum artigo recente, Gastão Cruz insere Ruy Belo entre os poetas que, tal como ele e os seus companheiros de Poesia 61, mas também, por exemplo, Ramos Rosa ou Carlos de Oliveira, davam prioridade à "pesquisa no domínio da linguagem poética" e, nos anos 60, procuraram "levar o mais longe possível o ímpeto inovador (...) das ainda muito influentes linhas modernista e surrealista". Gastão nota ainda que, num contexto de repressão política, Ruy Belo faz questão de dar o seu testemunho, mas "sem jamais alienar a condição de artista da linguagem". Joaquim Manuel Magalhães, num texto do livro "Os Dois Crepúsculos" (1981), diz algo bastante semelhante, sublinhando que "a contínua atenção política" da sua poesia dispensa "qualquer demagogia verbal, qualquer concessão, seja de que espécie for, a qualquer panfletarismo".

Mas onde Gastão Cruz parece ver um poeta de quase exclusiva filiação modernista, já Magalhães lhe atribui uma genealogia mais complexa, situando-o numa linha de poetas que, "no Romantismo, inclui Wordsworth, no Modernismo, Eliot, no Pós-modernismo, Dylan Thomas". E que na poesia portuguesa, acrescenta, "passa por Cesário Verde, António Nobre e Alberto Caeiro".

Publicado em "Um Pouco da Morte", de 1989, este ensaio de Magalhães é provavelmente o primeiro texto em que o pós-modernismo é evocado a propósito de Ruy Belo. Apenas quatro anos mais tarde, em 1993, Américo António Lindeza Diogo já não terá dúvidas em reconhecer em Ruy Belo "a figura paradigmática" daquilo a que chama "um primeiro tempo" do pós-modernismo literário em Portugal.

Se Magalhães foi, ao longo dos anos 80, o principal reponsável, ainda que não o único, pelo facto de a atenção pública à obra de Ruy Belo não ter esmorecido, quer através dos muitos textos que lhe dedicou, quer pela edição que organizou da sua obra poética e crítica, essa tarefa irá ser assumida, a partir da década seguinte, por uma geração de ensaístas universitários que inclui, além do já referido Lindeza Diogo, Osvaldo Silvestre ou Pedro Serra.

Quando a Presença, a partir de 1996, reedita autonomamente todos os livros de poemas de Ruy Belo, acrescentando a cada um deles um novo prefácio, Silvestre é convidado a apresentar "Boca Bilingue" (1966). Logo no primeiro parágrafo, afirma: "(...) a obra de Ruy Belo aparece-nos hoje como uma das mais convincentes evidências do esgotamento dos imperativos do modernismo."

Em 2002, o mesmo Silvestre e Pedro Serra organizam a ambiciosa antologia "Século de Ouro". Ruy Belo é, a par de Álvaro de Campos, o poeta mais representado. A edição deste volume constituiu um momento forte desse movimento de revitalização canónica do autor que se vinha desenvolvendo desde a segunda metade dos anos 90. Na introdução ao livro, os dois organizadores afirmam que "o século, que terá começado por prestar culto a Pascoaes nas duas primeiras décadas, terá sido pessoano entre 1930 e meados de 60, herbertiano entre esses meados de 60 e os de 80, para por fim, com especial ênfase na década de 90, atribuir tal posição a Ruy Belo".

Uma poética híbridaO século, digamos assim, foi levado a concordar com Silvestre e Serra, mas, curiosamente, também terá acabado por dar razão a Gastão Cruz, que afirmou ao Ípsilon considerar Ruy Belo "o maior poeta português da segunda metade do século XX, aquele que faz ‘pendant' com o Pessoa da primeira metade do século".

Sem ir tão longe, Nuno Júdice também lhe atribui "uma das obras centrais da segunda metade do século XX", acrescentando que Ruy Belo, com a sua revitalização do poema longo e a "base filosófica e reflexiva" da sua poesia, foi "marcante" para os poetas da sua própria geração. Já Paula Morão, ainda antes de apreciar Ruy Belo com o seu olhar especializado de professora e ensaísta, tinha sido cativada pela "impressão de identificação pessoal" que sentira ao ler, "por volta de 1971", "Homem de Palavra[s]", o seu primeiro confronto com a poesia de Belo.

A diferença que se esconde sob este aparente consenso é que o Ruy Belo de Gastão e Júdice, ou mesmo o de Magalhães, não é exactamente o poeta pré-pós-modernista proposto por esta nova geração de críticos. E não é decerto por acaso que Pedro Serra dedica as primeiras páginas do seu já referido livro sobre Ruy Belo a inventariar e rebater as sucessivas leituras anteriores da obra beliana.

Um dos obstáculos evidentes nesta tentativa de descolar Ruy Belo de uma linhagem estritamente modernista, mesmo admitindo o que diversamente deve a um T. S. Eliot ou a um Pessoa, é a própria obra crítica de Ruy Belo, reunida em 1969 no volume "Na Senda de Poesia", que veio a ser postumamente reeditado com grande acréscimo de textos dispersos. Quer nas suas refelexões mais gerais sobre a poesia, quer nas suas abordagens de obras concretas, o Ruy Belo crítico é manifestamente um homem de convencionais convicções modernistas.

A ensaísta Rosa Maria Martelo, que participa também neste colóquio, adianta uma hipótese que contribuiria para atenuar estas contradições, e que passa por se assumir que a contradição, por assim dizer, está no próprio Ruy Belo. Martelo vê de algum modo três fases distintas nesta poesia: a primeira iniciar-se-ia e esgotar-se-ia com "Aquele Grande Rio Eufrates"; a segunda, que atravessaria os restantes livros dos anos 60 e os primeiros da década seguinte, seria aquela em que esta obra se aproxima mais das revisitações do modernismo próprias da época; a terceira, coincidente com a opção definitiva pelo poema longo, vê-a Martelo como uma fase algo híbrida, em que a herança modernista está apenas presente à escala do verso ou do segmento, mas já não ao nível da estrutura do poema. Essa característica expansiva dos últimos poemas longos de Ruy Belo, que em rigor poderiam prosseguir indefinidamente para lá do ponto em que o poeta decidiu terminá-los - e que, nota ainda Martelo, são constituídos por uma acumulação de segmentos cuja ordenação poderia ser permutada sem danos irremediáveis ao nível do sentido -, é justamente um dos pontos em que o poeta se afasta da tradição modernista do poema longo, seja ela a de Eliot, seja a da hiper-estruturada "Ode Marítima" de Álvaro de Campos.

Uma certeza inabalável A outro participante no colóquio, o ensaísta Gustavo Rubim, o que mais o impressionou na sua releitura desta poesia foi a constatação de que "Ruy Belo é o último poeta português a estrear-se com um nome forte". E esta "certeza inabalável na sua natureza de poeta", argumenta Rubim, coloca-o nos antípodas dos "poetas sem qualidades, dos poetas sem uma convicção forte de que são poetas".

Seria interessante perceber como é que esta figura do poeta forte joga, em Ruy Belo, com uma aguda consciência de que a poesia é um valor declinante no mundo em que lhe foi dado viver, dilema que não parece angustiar excessivamente outro poeta da sua geração: Herberto Helder.

Mas, ao usar, decerto não inocentemente, a expressão "poetas sem qualidades" - título, como se sabe, de uma antologia organizada em 2002 por Manuel de Freitas -, Rubim parece estar ainda a sugerir que o tipo de poeta que Belo é o opõe naturalmente a Freitas e a outros poetas recentes com os quais este mantém reconhecidas afinidades.

A hipótese parece encontrar alguma confirmação no facto de Freitas não ter incluído Ruy Belo na sua antologia "A Perspectiva da Morte", editada pela Assírio & Alvim em 2009. Sendo óbvio que "a perspectiva da morte" não é propriamente uma questão menor na poesia de Ruy Belo, e não parecendo provável que essa circunstância tenha escapado ao antologiador, é lícito presumir que esta é uma dessas ausências que Freitas justifica na introdução com o recurso a uma célebre frase de Rilke: "Je n'ai pas d'organe pour Goethe."

Quem for seguindo os blogues de alguns poetas da mesma geração, e as polémicas por vezes bastante aguerridas que se travam nas respectivas caixas de comentários, confirmará que Freitas não é caso único, e que Ruy Belo parece não ser, de facto, uma referência consensual para os poetas da nova geração, ainda que nela tenha também admiradores incondicionais, como se depreende, por exemplo, do destaque que lhe é dado na antologia "Poemas Portugueses", de Rui Lage e Jorge Reis-Sá, onde ocupa um espaço significativamente superior ao de Mário Cesariny ou de Herberto Helder.

Se levarmos a hipótese de Rubim para terrenos mais especulativos, pode ainda perguntar-se se não haverá relação entre esse investimento radical de Ruy Belo na sua condição de poeta, que parece inegável, e a sua "aventura mística" de dez anos, que refere no prefácio à segunda edição de "Aquele Grande Rio Eufrates". Como se tivesse tentado encontrar, não exactamente na poesia, mas no ser poeta, uma substituição para a intensidade dessa entrega absoluta que deixara para trás.

Leia-se este excerto de um texto que publicou, em 1972, na revista "Crítica", dirigida por Jorge Silva Melo: "O poeta, sensível e até mais sensível que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a vida privada. Ai dele, se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mais ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo (...)." Num texto que poderia ser lido como uma espécie de Imitação de Cristo "ad usum poetae", o poeta que Ruy Belo nos descreve não parece andar muito longe da figura do mártir.»

A poesia de Ruy Belo I

 
 
A poesia de Ruy Belo nas palavras de Gastão Cruz:
«Enquanto «de novo a seara amadurece», lembremos a obra de Ruy Belo, um dos mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa, um monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e experiências da poesia portuguesa moderna confluem numa síntese poderosa, que congrega características aparentemente tão demarcadas e raramente conciliadas, como um discurso torrencial, por vezes próximo da prosa, e uma imaginação verbal inesgotável, por um lado, e uma extrema atenção ao pormenor do verso, nomeadamente no nível fónico, por outro, como uma permanente dissecação da vida e da realidade quotidianas, em contraponto com uma antevisão, ora angustiada, ora irónica, da morte própria e uma inquietação perante a morte alheia não menos constantes.»
Gastão Cruz , A Poesia Portuguesa Hoje
2ª edição corrigida e aumentada
Lisboa, Relógio d’Água, 1999
 
 

No aniversário da morte de Ruy Belo escreveu-se...

Lisboa, 07 Ago (lusa) - Ruy Belo, um dos nomes maiores da poesia portuguesa do século XX, morreu faz dia 08 de Agosto 30 anos. Tinha 45 anos e, no seu último livro, "Despeço-me da terra da alegria", deixara escrito este verso emblemático: "O receio da morte é a fonte da arte".
O poema a que o verso pertence tem por título "A fonte da arte" e Ruy Belo refere no livro o local e o dia em que o escreveu: Madrid, 24/IV/1977.
Na capital espanhola, na sua universidade, tinha sido até então, e desde 1971, Leitor de Português. Precisamente no ano da redacção daquele poema, 1977, deixaria o cargo para regressar a Portugal.
Poeta, e um dos maiores «inter pares» no século em que viveu, no currículo duas licenciaturas - em Direito e em Filologia Românica - e um doutoramento em Direito Canónico, chegou a Portugal e procurou emprego. Não lho deram na Faculdade de Letras de Lisboa. Não conseguiu mais do que um lugar de professor, no ensino nocturno, na Escola Técnica do Cacém.
Morreu, de um edema pulmonar, na sua casa em Queluz, a 8 de Agosto de 1978. A sua obra é hoje objecto de estudo e admiração. De imitação, também. A melhor homenagem será lê-la, mesmo se, como o próprio dizia - e o poeta José Tolentino Mendonça (JTM) recordou em declarações à Lusa - "a melhor homenagem que podemos fazer a um poeta anterior que admiramos é levantarmo-nos contra ele".
"Para todo o leitor de poesia - disse JTM - há um encontro marcado com a poética de Ruy Belo, que marca assombrosamente a segunda metade do nosso século XX. A sua obra tem uma originalidade e um fulgor incontornáveis. É um ponto de luz, um grande momento de transfiguração da língua".
Ruy Belo, esclarece, "cria uma língua do quotidiano, uma língua para dizer a casa, a infância, o verão ou a morte, que volta a ter a intensidade das antigas cosmogonias, a energia quase sagradas das falas ininterruptas. Ruy Belo dá ao civil direito à liberdade de expressão uma dimensão ontológica".
Terá sido esta para o poeta de "Baldios", autor de uma dissertação sobre a poesia de Ruy Belo para a sua licenciatura em Teologia na Universidade Católica, a sua "primeira impressão de leitura".
"Claro que a circularidade dramática entre presença e silêncio, dúvida e crença no que toca à busca de sentido e à questão de Deus, me interessou também profundamente", reconhece.
JTM considera haver "três grandes eixos reconhecíveis na arquitectura" da obra de Belo: "tempo, espaço e palavra. A consciência do tempo como experiência de passagem, turbulenta, irrepetível, impossível de reter, marca a fogo, poema a poema, a obra de Ruy Belo. Mas não só. Esta poesia denuncia os usos sociais que banalizam o tempo, reduzindo-o ao estatuto de produto, deglutido num consumo rápido e publicitário. O espaço tem a ver com o corpo, a casa, o país, o mundo. O fechado e o aberto. O interior e o exterior. As moradas provisórias e a definitiva morada".
"De resto - realça ainda - a poesia de Ruy Belo constrói-se numa indagação permanente em torno à palavra. Poucos poetas reflectiram tão intensamente o próprio processo poético (descrito como transporte, transposição, transplante...). Além de que trouxe para a poesia portuguesa uma sonoridade inesquecível".
Nascido em São João da Ribeira, Rio Maior, em 1933, Ruy Belo licenciou-se em Direito e em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e doutorou-se em Direito Canónico em Roma com uma tese «Ficção Literária e Censura Eclesiástica».
O seu primeiro livro de poemas, "Aquele grande rio Eufrates", data de 1961, o mesmo ano em que dá à estampa a colectânea de ensaios "Poesia Nova".
Seguem-se "O Problema da Habitação - alguns aspectos"(1962), "Boca Bilingue" (1966), "Homem de Palavras[s]" (1969), "Na Senda da Poesia" (entrevistas, textos ensaísticos, 1969), "País Possível"(1973, antologia), "Transporte no Tempo" (1973), "A Margem da Alegria" (1974), "Toda a Terra" (1976) e "Despeço-me da Terra da Alegria" (1977).
No posfácio ao primeiro volume da Obra poética de Ruy Belo (Editorial Presença), o poeta e ensaísta Joaquim Manuel Magalhães (JMM) assinala na sua obra duas vertentes: de um lado, "a omnipresente consciência da morte, da solidão", do outro "a minuciosa exaltação das coisas, a persistente nomeação dos objectos e dos actos quotidianos, as recordações do tempo infantil gostosamente enumeradas, a fruição do tempo, dos nevoeiros, do mar, do sol, a rede de alegrias do tecido social comunitário, o desejo de transformação dos erros humanos".
Para JMM, este "conflito é central para o entendimento da sua poesia".
Um outro poeta, Gastão Cruz, escreve em "A Poesia portuguesa hoje" (Relógio d'água) que a obra de Ruy Belo "um dos mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa".
É - define - "um monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e experiências da poesia portuguesa moderna confluem numa síntese poderosa, que congrega características aparentemente tão demarcadas e raramente conciliadas, como um discurso torrencial, por vezes próximo da prosa, e uma imaginação verbal inesgotável, por um lado, e uma extrema atenção ao pormenor do verso, nomeadamente no nível fónico, por outro, como uma permanente dissecação da vida e da realidade quotidianas, em contraponto com uma antevisão, ora angustiada, ora irónica, da morte própria e uma inquietação perante a morte alheia não menos constantes".
RMM.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Sophia de Mello Breyner Andresen

na Biblioteca Nacional
no suplemento Ipsilon do Público




Alexandre O'Neill


Poeta português, Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu a 19 de Dezembro de 1924, em Lisboa, e morreu a 21 de Agosto de 1986, na mesma cidade. Para além de se ter dedicado à poesia, Alexandre O'Neill exerceu a actividade profissional de técnico publicitário. Fundador do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, António Pedro, José-Augusto França, directamente influenciado pelo surrealismo bretoniano, desvinculou-se do grupo a partir de Tempo de Fantasmas (1951), embora a passagem pelo surrealismo marque indelevelmente a sua postura estética. A sua distanciação em relação a este movimento não obstou a que um estilo sarcástico e irónico muito pessoal se impregnasse de algumas características do Surrealismo, abordando noutros passos o Concretismo, preocupando-se não em fazer "bonito", mas sim "bom e expressivo". Para Clara Rocha, a poesia de Alexandre O'Neill coincide com o programa surrealista a dois níveis: "a libertação total do homem e a libertação total da arte. O que implica: primeiro, uma poesia de 'intervenção', exortando os homens a libertarem-se dos constrangimentos de toda a ordem que os tolhem e oprimem (familiares, sociais, morais, quotidianos, psicológico, políticos, etc.); segundo, a libertação da palavra de todas as formas de censura (estética, moral, lógica, do bom senso, etc.)" (cf. ROCHA, Clara - prefácio a Poesias Completas, 1982, p. 12). Para Fernando J. B. Martinho (retomando um artigo de Quadernici Portoghesi), a diferença de O'Neill relativamente à poética surrealista situa-se na "preferência, relativamente à oposição 'falar/imaginar', pelo primeiro pólo", numa consequente atenção dispensada, nos livros posteriores a Tempo de Fantasmas, como No Reino da Dinamarca ou Abandono Vigiado, "à sociedade portuguesa de que vai traçar como que a radiografia, surpreendendo-a na sua mediocridade, nos seus ridículos, nos seus pequenos vícios provincianos" (MARTINHO, Fernando J. B., op. cit., 1996, pp. 39-40). Nessa medida, e ainda segundo o mesmo crítico, se "o surrealismo ortodoxo põe a sua crença na existência de um 'ponto do espírito em que [...] o real e o imaginário' deixariam 'de ser percebidos contraditoriamente', em Alexandre O' Neill toda a busca parece centrar-se na 'vida' e no 'real'" (id. ibi, p. 40).
Recebeu, pelas suas Poesias Completas, o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários (1983).

Bibliografia: A Ampola Miraculosa, Lisboa, 1948; Tempo de Fantasmas, Lisboa, 1951; No Reino da Dinamarca, Lisboa, 1958; Abandono Vigiado, Lisboa, 1960; Feira Cabisbaixa, Lisboa, 1965; De Ombro na Ombreira, Lisboa, 1969; As Andorinhas Não Têm Restaurante, Lisboa, 1970; Entre a Cortina e a Vidraça, Lisboa, 1972; A Saca de Orelhas, Lisboa, 1979; Uma Coisa Em Forma de Assim, Lisboa, 1980; As Horas já de Números Vestidas, 1981; Poesias Completas, 1951-1981, Lisboa, 1982; O Princípio da Utopia, Lisboa, 1986; Tomai lá do O'Neill!, Lisboa, 1986; Coração Acordeão, antologia de textos de imprensa, 2004

O século XX português

A fase de decadência que a monarquia atravessava deixava já antever mudanças políticas (a implantação da República parecia inevitável) que levaram a cogitações sobre o destino dum país longe da grandiosidade doutras eras. Tal contemplação do passado confundia-se compreensivelmente com um sentimento de saudade que, no início do séc. XX, é mais do que um recurso literário e se torna mesmo um conceito filosófico.
Teixeira de Pascoaes (1877-1952) será o principal mentor desta corrente literário-filosófica, cuja doutrina estabelece em obras como Marânces (1911) e Elegia de Amor (1924).

A revista Águia, lançada por Pascoaes e editada entre 1910 e 1930, será a primeira de uma série de publicações literárias periódicas onde se vão encontrar os nomes mais significativos e inovadores da literatura portuguesa dos primeiras décadas do novo século.

Uma das mais efémeras mas mais relevantes seria Orpheu, cujo primeiro número surgiu em 1915 e iria divulgar em Portugal o Modernismo europeu, concretamente o Futurismo de Phillippo Marinetti, autor italiano partidário duma "actualização" da literatura e da arte em geral em relação aos novos tempos de progresso tecnológico.

Os primeiros mentores da Orpheu foram Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1915) e Almada Negreiros (1893-1970), o mais provocador e versátil de todos, nome também prestigiado das artes plásticas.

Sá-Carneiro publicou alguns contos, mas tornar-se-ia conhecido sobretudo como poeta. Dispersão (1914) revela logo no título a dificuldade de concentração, a pluralidade de opções com que o seu interior se confrontava, anunciando já o termo trágico que daria à sua vida.

Fernando Pessoa nunca viria a conhecer em vida uma ínfima parcela da fama de que, décadas depois da sua morte, a sua obra seria alvo. Caso único na literatura mundial, Pessoa foi além da sua própria personalidade enquanto escritor e criou uma série de heterónimos, autores por si imaginados, com estilos próprios e diferentes atitudes perante a vida.

A Fernando Pessoa, ele próprio, terá de chamar-se, em literatura, ortónimo, isto é, autor de textos assinados com o seu nome; são em grande parte poesia de carácter filosófico, centrada no mistério da vida. Mensagem foi o único livro que viu publicado (em 1934) e contém uma abordagem messiânica de aspectos da história de Portugal, envolta num grande misticismo.

O primeiro dos mais conhecidos heterónimos criados por Fernando Pessoa foi Alberto Caeiro, campesino pouco instruído, detentor duma sabedoria muito própria, duma capacidade de análise muito natural, mas nem por isso menos profunda. Álvaro de Campos, a que Pessoa atribui a profissão de engenheiro naval, é o arauto do mundo novo, mecanicista, onde o progresso é visível em cada nova máquina que irrompe na paisagem. As suas odes oscilam entre o entusiasmo pelas transformações que marcam as primeiras décadas do novo século e um certo tédio e desencanto perante a sua própria incapacidade de mudar o (seu) mundo. Curiosamente definido (biografado) por Pessoa como um monárquico exilado no Brasil, Ricardo Reis é um médico apaixonado pelos clássicos cujos poemas combinam um carácter morigerador com a defesa da liberdade de cada indivíduo.

Camilo Pessanha (1867-1926) é o primeiro verdadeiro poeta simbolista português, com uma produção marcada por um ritmo e uma musicalidade invulgares.

Ex-colaboradores da revista Águia juntaram-se para dar início a uma nova publicação literária, Seara Nova, que, entre 1921 e 1982, se tornou especialmente conhecida pelos ensaios (não só sobre literatura) que as suas páginas acolheram. Dos vultos inicialmente ligados a esta publicação merecem destaque o historiador Jaime Cortesão (1884-1960), o escritor Raul Brandão (1867-1930), expressionista que se preocupou em dar voz aos menos favorecidos, descrevendo as suas difíceis condições de vida, e que obteve alguma popularidade com Os Pescadores (1923), Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), escritor que foi também presidente da república, e Aquilino Ribeiro (1885-1963).

Aquilino Ribeiro imprimiu um tom regionalista aos seus romances a par duma linguagem riquíssima. O Malhadinhas (1922) e Terras do Demo (1928), entre outros, trazem à literatura portuguesa a vida dura dos habitantes das regiões mais isoladas do país, em descrições que ainda hoje não seriam de todo despropositadas.

De 1927 a 1940 há a salientar a importância da revista Presença, de que emergem nomes como José Régio (1901-1969) e Miguel Torga (1907-1995).

José Régio demonstrou a sua versatilidade em áreas como o teatro, a poesia, o romance e o ensaio. A temática dos seus trabalhos de ficção insere-se frequentemente numa auto-análise a que não é alheio algum misticismo e, sobretudo, o conflito entre o Homem e Deus. Enquanto ensaísta dedicou-se à literatura portuguesa, sendo um dos primeiros a abordar a obra de Florbela Espanca (1894-1930), poetisa independente de movimentos literários e que ousou passar a versos uma sensualidade até então desconhecida na (então ainda escassa) literatura feminina. Dos seus poemas não está também ausente um sentimento de desencanto perante a falta de oportunidades que a vida lhe dava no sentido de alcançar uma existência de menos sofrimento e solidão, à qual acabou por pôr termo.

Voltando à revista Presença e à inclusão de Miguel Torga nas suas páginas, forçoso é referir que o seu espírito intrinsecamente independente (patente, por exemplo, num Diário que manteve durante décadas) o levou a atingir um estatuto relevante na literatura portuguesa que faz com que a sua obra seja analisada fora da integração em correntes literárias. Da sua vasta produção, em que sobressai o talento de contista, merecem destaque Bichos (1940) e Contos da Montanha (1941), onde a força da natureza se interliga com uma certa religiosidade.

Dotado do mesmo espírito independente, perante a vida e a literatura, Ferreira de Castro (1898-1974) começou por escrever fora de Portugal, já que emigrou com doze anos para o Brasil, onde trabalhou como seringueiro na Amazónia e, posteriormente, como jornalista. Emigrantes (1928) e A Selva (1930) são exemplos duma prosa vivida que espelha muitos aspectos da sua experiência pessoal. À medida que a sua obra vai crescendo vão-se notando também mudanças a nível da linguagem, mais rica em A Lã e a Neve (1947), e da composição das personagens, mais aprofundada em A Missão (1954).

Porque relatou muito do que viveu e, essencialmente, porque fez uma descrição bastante pormenorizada das duras condições de vida das classes trabalhadoras, há quem considere Ferreira de Castro o introdutor do Neo-realismo na literatura portuguesa. A nível ideológico, porém, faltar-lhe-á (e muitos consideram isso importante) a militância política (ou mesmo político-partidária) que, em especial no caso do Neo-realismo português, marcou este movimento. Após o golpe de estado de 1926, os partidos políticos (entre os quais o Partido Comunista Português) só podiam sobreviver na clandestinidade e a censura foi assaz severa para com a imprensa e a literatura. A revista Vértice usufruiu duma actividade regular considerável, tendo em conta os condicionalismos impostos pela Comissão de Censura, e foi, por assim dizer, o órgão difusor do Neo-realismo, tentando, tanto quanto possível, dar expressão literária aos conflitos sociais e à luta do proletariado.

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), autor de Esteiros (1941), obra dedicada a "homens que nunca foram meninos", Alves Redol (1911-1969), romancista, entre outros, de Gaibéus (1940) e Barranco de Cegos (1962), e Manuel da Fonseca (1911-1993), fecundo autor que chegou a ver obras suas adaptadas ao cinema e ao teatro após a Revolução de 25 de Abril de 1974, como Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958), foram alguns dos expoentes desta corrente literária empenhada na transmissão duma perspectiva marxista da vida e na discussão dos problemas dos extractos sociais mais humildes.

O desenvolvimento doutras formas de comunicação social ao longo do séc. XX tornou alguns escritores nomes familiares do chamado grande público, o que nem sempre, todavia, significava que a sua produção literária se tornasse substancialmente mais lida, uma vez que não se foram desenvolvendo hábitos de leitura na população.

Vitorino Nemésio (1901-1978), por exemplo, tornou-se especialmente conhecido por aparições semanais na televisão nos anos 70, em que evidenciava um estilo coloquial cativante que não escondia uma vasta cultura. Atrás de si tinha, porém, décadas de actividade como escritor e professor de literatura. Foi poeta, romancista e ensaísta e deixou vincada na sua obra a origem açoriana e um sentido apego a tradições populares. Mau Tempo no Canal (1944) reflecte bem a consciência social e literária dum escritor fisicamente ausente da sua terra natal, mas que a ela recorre como tema inesgotável.

Nos anos 60 o cinema foi veículo divulgador de parte da obra de Fernando Namora (1919-1989), médico de profissão, que passou do Neo-realismo ao Existencialismo à medida que, no desempenho dessa actividade, se afastou dos meios rurais e se radicou nos centros urbanos. Retalhos da Vida dum Médico, com um primeiro volume lançado em 1949, relatando experiências vividas no interior do país, e outro publicado em 1963, já com referências ao exercício da Medicina na capital, permitem, por si só, acompanhar a transformação do escritor e foram adaptados ao cinema, tal como Domingo à Tarde (1961), em que formula já questões de ordem metafísica.

A reflexão sobre a natureza humana foi praticamente o tema (mas com diferentes abordagens) de quase toda a produção literária de Vergílio Ferreira (1916-1996), exemplo mais claro do Existencialismo. Também graças a uma conseguida adaptação cinematográfica, Manhã Submersa, um dos seus primeiros livros (1944), tornou-se um êxito literário muito após a sua primeira edição. Escritor dos mais premiados a nível nacional e internacional, Vergílio Ferreira deixou num diário publicado desde 1981, Conta-Corrente, um contributo para o entendimento das mudanças sociais operadas no Portugal pós-25 de Abril.

Idêntica contribuição proveio de Natália Correia (1923-1993), muito mais conhecida pela sua poesia e pela truculência das suas intervenções na sociedade portuguesa, antes e depois da re-instauração da democracia. Sem se integrar numa corrente literária precisa, Natália Correia, que também abraçou a dramaturgia e o ensaio e foi responsável pela organização de antologias, toca pontualmente o Surrealismo, um surrealismo que, em Portugal, surge algo independente no tempo em relação às literaturas doutros países.

Mais claramente ligada a essa corrente, mas não presa a ela, é a produção poética de Alexandre O'Neill (1924-1986), repleta de ironia e sarcasmo. Como sucedeu com outros poetas, O'Neill viu (e nisso colaborou empenhadamente) alguns dos seus textos musicados e interpretados principalmente por Amália Rodrigues, a mais prestigiada cantora portuguesa. O fado foi um veículo para a divulgação junto de todas as classes de poemas de autores como Pedro Homem de Mello (1904-1984), oriundo da Presença e profundo estudioso do folclore português, ou David Mourão-Ferreira (1927-1996), também contista, ensaísta e professor catedrático, por cuja obra perpassa um erotismo e uma elegância formal únicos na literatura portuguesa.

David Mourão-Ferreira foi também o que pode designar-se dum "poeta de Lisboa", sendo de ter presente que a capital portuguesa foi o último bastião das tertúlias literárias. Particularmente a Lisboa se associa também uma certa boémia intelectual, vivida e admirada, por exemplo, por José Cardoso Pires (1925-1998), que preferiu deixar patentes as suas preocupações sociais e políticas numa literatura objectiva, algo influenciada pelos mestres contistas norte-americanos e fortemente crítica em relação à actuação do Estado Novo. O Delfim (1968) e Dinossauro Excelentíssimo (1972) são romances que revelam uma oposição contundente aos valores mais preservados pelo regime anterior à Revolução de 25 de Abril de 1974 e que mais contribuíam para a atmosfera fechada (dir-se-ia mesmo sufocante) então vivida em Portugal. Cardoso Pires consegue um outro grande êxito literário e de vendas com Balada da Praia dos Cães (1982), sobre um caso famoso ocorrido no seio da oposição ao salazarismo no início dos anos 60.

A década de 60, com a eclosão da Guerra Colonial, foi, aliás, determinante na tomada de consciência política de muitos escritores, que, mesmo sem uma actividade militante, usaram a palavra como arma contra a situação vigente. Sophia de Mello Breyner Andresen (nascida em 1919), após uma fase de literatura voltada para o universo infanto-juvenil e duma poesia com uma linguagem extremamente equilibrada, marcada pela admiração pela civilização grega, passa com Livro VI (1962) a mostrar de forma cada vez mais clara a sua oposição a situações de injustiça. Após a Revolução de Abril, Sophia de Mello Breyner Andresen tem sido uma das escritoras mais premiadas e homenageadas.

A chamada Revolução dos Cravos trouxe consigo a abolição da censura e uma maior divulgação das obras literárias, ainda que já não tanto ao abrigo de revistas literárias. Há, de qualquer modo, a salientar o Jornal de Letras, publicado com assinalável periodicidade desde o início dos anos 80, e a maior informação sobre novidades literárias na comunicação social.

Aumentou o número de prémios literários, para primeiras obras e para a consagração de carreiras. Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922), profícua romancista, ímpar na capacidade de análise de personagens e situações e frequentemente influenciada por momentos e figuras da história de Portugal, é certamente dos nomes mais premiados. O seu romance A Sibila (1954) é unanimemente considerado um marco na literatura portuguesa, tendo já constado dos programas oficiais do ensino secundário.
In http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt (consultado em 20/5/2013)

 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O que é... surrealismo

Uma das principais correntes estéticas do século XX, o movimento surrealista foi liderado por escritores como André Breton, Paul Éluard e Pierre Reverdy. Em 1924, após o estudo da pintura de Giorgio De Chirico, André Breton publica aquele que se tornaria o acto fundador e o programa estético do movimento, o "Manifesto do Surrealismo", através do qual defendeu um processo criativo assente no automatismo psíquico. A partir daí o poeta assumiu-se como o principal ideólogo do movimento, publicando um segundo manifesto em 1929.


Artes Plásticas e Decorativas

Entre os artistas que integraram o grupo fundador do movimento destacaram-se Marcel Duchamp, Francis Picabia, Max Ernst, Hans Arp e Man Ray. Em 1929 juntaram-se Pierre Roy, Georges Malkine, os espanhóis Salvador Dali e Joan Miró e o suíço Giacometti. Em simultâneo, formaram-se grupos de artistas surrealistas em vários países, como a Bélgica (com os pintores René Magritte e Paul Delvaux), Portugal, Estados Unidos, Japão, etc. Em Portugal a assimilação desta corrente foi mais tardia, manifestando-se na primeira metade da década de 40, em plena Segunda Guerra Mundial. Teve como principais representantes os pintores António Pedro, António Dacosta e Cândido da Costa Pinto.
Apesar do carácter vanguardista e revolucionário e da aparente ruptura com a história, os surrealistas apoiaram-se em trabalhos de artistas como Bosch, Piranesi, Goya, Chagall ou Klee e em movimentos como o Maneirismo, o Romantismo, o Simbolismo, a Pintura Metafísica e o Dadaísmo. Deste último retomaram algumas experiências (como a criação através de processos automáticos ou aleatórios) que levaram a um nível mais radical. Procurando apresentar o lado dissonante da personalidade humana, desenvolveram novas formas expressivas, das quais se salientam os desenhos automáticos de Masson e as colagens e frottages de Max Ernst.
O Surrealismo procurou ultrapassar a percepção convencional e tradicional da realidade, desenvolvendo pesquisas estéticas fundamentadas nas descobertas freudianas do valor do inconsciente enquanto complemento da vida consciente e da capacidade comunicativa do sonho. Desta forma conseguem ultrapassar o nihilismo redutor do Dadaísmo, procurando então associar elementos díspares, através da dissociação dos objectos dos seus contextos convencionais de forma a obter significações inesperadas.
Recusando uma rígida unidade estilística, o surrealismo concretizou-se num espectro muito alargado de linguagens que iam desde o realismo mais minucioso de Dali, de Magritte e de Paul Delvaux, às tendências mais abstractas de Miró ou de Hans Arp, englobando expressões como a pintura, a escultura, a fotografia ou o cinema.
Desaparecendo enquanto movimento organizado com o eclodir da Segunda Guerra Mundial, o Surrealismo teve repercussões consideráveis para o desenvolvimento de muitas das correntes artísticas da segunda metade do século XX (...)
Literatura
Apollinaire aparece com o designativo Surrealismo (ou Sobrerrealismo) em 1917 no prefácio do seu drama Les Mamelles de Tirésias. André Breton aplica-o, quando quer referir «um certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem ao estado de sonho». Breton remonta a origem filosófica e literária do movimento aos séculos XVIII e XIX e fala em Hugo, Hegel, Nerval, Baudelaire; mas Rimbaud, Apollinaire, Tzara e Freud (com o inconsciente e o automatismo psíquico), entre outras figuras do século XIX, marcam nele assinalada influência. (...)  Difunde-se pela Europa, menos profundamente na Inglaterra e mais atrasado em Portugal (...)
Além de movimento artístico-literário e estético, o Surrealismo aparece como uma tomada de consciência face à civilização e cultura do Ocidente europeu. Aproveita, amplia, transforma valores do Romantismo e volta-se para a filosofia que rejeita o racionalismo cartesiano ou o equilíbrio do Classicismo. Rejeita o convencionalismo e opõe-lhe a liberdade; Substitui o positivismo pela sobrerrealidade, pelo sonho, pelo inverosímil, pelo insólito porque sente que o homem ultrapassa as limitações da matéria na busca do abstracto, do mistério. Daí a importância da metáfora. Alguns momentos do Surrealismo aproximam-no da linha política marxista e comunista, o que provoca a separação de Breton e de mais surrealistas. A rejeição das regras de Aristóteles e do racionalismo de Descartes leva o poeta surrealista a sobrestimar o que é surpreendente, fantástico, acidental, fortuito e a exprimir-se com acentuada liberdade de palavras e com especial relevância para o símbolo, a metáfora, analogia (elementos que estão ao serviço do maravilhoso, do insólito, do mistério). Por tudo isto se afirma o valor da liberdade para os surrealistas na sua tentativa de objectivar, visualizar o subjectivo até com uma estreita ligação à pintura, aparecendo mesmo trechos ilustrados com desenhos, pois o movimento sente-se em pintores como Salvador Dalí, Joan Miró (Barcelona 1893), este considerado um sobrerrealista inigualável pela frescura, fantasia e humor dos quadros. Em Lisboa formam-se tardiamente dois grupos surrealistas. Em 1947, o primeiro, com António Pedro, José Augusto França, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O'Neill. Este torna-se dissidente e, no ano seguinte, forma novo grupo com António Maria Lisboa. José Augusto França é ficcionista, ensaísta e crítico de arte. É, principalmente, um teórico do Surrealismo. Alexandre O'Neill pende, primeiro, para a sátira em Agora Escrevo; mas, em Tempo de Fantasmas (1951) e No Reino da Dinamarca (1958), já o pensamento toma asas para o sonho, para o fantástico. O segundo grupo é o que legitimamente representa o Surrealismo em Portugal. Antes destas figuras e além delas, outros poetas afirmam a sua inclinação para os processos da escola: Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena (considerado um dos críticos do movimento).

In http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt/ (consultado em 13/5/2013)

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Mário de Sá-Carneiro

«Poeta e ficcionista, Mário de Sá-Carneiro constitui, tal como Fernando Pessoa e Almada-Negreiros, um dos principais representantes do Modernismo português. Nasceu em Lisboa, a 19 de Maio de 1890, e morreu precocemente a 26 de Abril de 1916, também em Lisboa. Iniciou os seus estudos em Direito na cidade de Coimbra, tendo partido depois para Paris, em 1912, para cursar também Direito, estudos que abandonaria pouco depois por se ter deixado seduzir por uma vida desregrada e de boémia. De temperamento instável e inadaptado, dedicou-se, na capital francesa, à produção de grande parte da sua obra poética. A figura de Mário de Sá-Carneiro assume uma importância basilar para a compreensão do modo como o Modernismo português se foi formando com caracteres próprios na recepção das correntes de vanguarda europeias, processo de que a correspondência que estabeleceu com Fernando Pessoa dá um testemunho documental precioso e que culminaria com a publicação de Orpheu, em 1915. Os poemas que edita no primeiro número de Orpheu, destinados a Indícios de Oiro, são, a este título, significativos da sua adesão às estéticas paúlica e sensacionista, que na correspondência entre os dois grandes poetas fora gerada, glosando, então, em moldes muito devedores do simbolismo-decandentismo, a abjecção de um eu em conflito com um outro, reverso da sua frustração e insatisfação ("Eu não sou eu nem o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro,..."), ao mesmo tempo que a publicação de "Manucure", no segundo número de Orpheu, revela uma incursão por uma forma poética mais próxima da escrita da vanguarda futurista, no que contém de autonomização do significante. Já antes de Orpheu, a colaboração de Mário de Sá-Carneiro na revista Renascença (1914) - onde Fernando Pessoa publica Impressões de Crepúsculo -, com a edição de Além (apresentado como uma tradução portuguesa de certo Petrus Ivanovitch Zagoriansky), instituíra a sua experiência poética na charneira entre a herança simbolista e as tentativas paúlicas e interseccionistas. Mário de Sá-Carneiro constitui ainda um paradigma da prosa modernista portuguesa pela publicação das narrativas Céu em Fogo e A Confissão de Lúcio, construídas frequentemente a partir do estranhamento de um narrador insolitamente introduzido em situações onde o erotismo, o onirismo e o fantástico se associam aos temas obsessivos do desdobramento e autodestruição do eu. O seu suicídio, com 26 anos (em 1916, Paris), parecendo vir selar aquele sentimento de inadaptação à vida, de permanente incompletude, de narcísico auto-aviltamento e, sobretudo, de consciência dolorosa da irremediável cisão do eu, consubstanciada na dramática tensão entre um eu, vil e prosaico, e um outro, seu duplo ideal, que alimentaram tematicamente a obra, nimbou-o para a posteridade de uma aura de poeta maldito, que deixaria um forte ascendente sobre a poesia contemporânea de gerações posteriores à sua. Com efeito, a mensagem poética do autor de Indícios de Oiro ecoa postumamente na literatura presencista da geração de 50 e até surrealista, passando por nomes absolutamente diversos como Sebastião da Gama, Mário de Cesariny ou Alexandre O'Neill. Bibliografia: Princípio: Novelas Originais, Lisboa, 1912; A Confissão de Lúcio, Lisboa, 1914; Céu em Fogo, Lisboa, 1915; Cartas a Fernando Pessoa, Lisboa, 1958-59; Dispersão: 12 Poesias, Lisboa, 1914; Indícios de Oiro, Porto, 1937; Poesias, 1946; Poemas Completos, Lisboa, 1996.
 
In http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt/(consultado em 10/4/2013)
«O primeiro surto de poesia moderna em Portugal com características de vanguarda centrou-se na publicação dos dois únicos números da revista Orpheu. Mas Orpheu não era esteticamente homogénea nem foi a única prática de vanguarda desses anos, aliás em sintonia cronológica com outros movimentos das primeiras vanguardas europeias: •Futurismo (1911) •Imagismo (1911) •Dadaísmo (1914) •Orpheu (1915) É por isso natural esse pluralismo estético nas páginas de Orpheu, pois que às manifestas importações, principalmente Futuristas, se juntavam as coordenadas da nossa própria Poesia nas quais já se detectavam anteriormente alguns sinais de estremecimentos de renovação, embora envoltos em névoas pós-simbolistas e decadentistas. Orpheu deve, pois, considerar-se como uma prática de ruptura de vanguarda, mas também como uma plataforma de encontro entre o passado e o futuro já que entre os seus organizadores e participantes as posições estéticas pós-simbolistas coexistiam com a preocupação de busca de novas formas de praticar a poesia, de a comunicar e de a fazer actuante na cultura do tempo, nosso e europeu. (E. Melo e Castro, A Vanguarda na Poesia Portuguesa do Século XX» In http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt/ (consultado em 10/4/2013»

Manifesto Anti-Dantas

quinta-feira, 7 de março de 2013

Visita de estudo virtual


O Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, disponibiliza em linha uma ótima documentação, que pode ser consultada  aqui.

Um texto "capital" para professores e alunos

Este texto, publicado em http://blogues.publico.pt/pagina23/page/2/ (consultado em 7/3/2013), é para D-E-C-O-R-A-R!!! (... já me viram a escrever pontos de exclamação? Ñão, pois não? Mas este texto justifica-os.)

«Para que, nos jor­nais esco­lares, pos­sam abun­dar os tex­tos bem escritos e orga­ni­za­dos, com ideias logi­ca­mente expres­sas, é pre­ciso não esque­cer que há um tra­balho prévio a fazer na sala de aula. Para aju­dar a que ele se faça con­ve­nien­te­mente, no Bole­tim PÚBLICO na Escola de Abril de 2006, Isabel Mar­garida Duarte, pro­fes­sora da Fac­ul­dade de Letras da Uni­ver­si­dade do Porto, apre­sen­tava um con­junto de pro­postas muito concretas. A actu­al­i­dade das sugestões, ainda mais per­ti­nentes nesta sem­ana em que, em algu­mas esco­las, se tem estado a preparar a cel­e­bração, amanhã, do Dia Inter­na­cional da Lín­gua Materna, recomenda que aqui o publique­mos de novo.


Para os alunos pas­sarem a escr­ever mel­hor, o pro­fes­sor respon­sável pela apren­diza­gem não pode ape­nas atacar os erros ortográ­fi­cos, mais visíveis e, tam­bém, mais fáceis de cor­ri­gir, porque se situam à super­fí­cie do texto e obe­de­cem, na ver­dade, a duas dezenas de regras facil­mente mem­o­rizáveis. Mais difí­cil, por vezes, é con­seguir que os miú­dos escrevam frases gra­mat­i­cal­mente aceitáveis e, ainda mais com­pli­cado, tex­tos orga­ni­za­dos, com ideias logi­ca­mente expres­sas.
Escr­ever é uma tarefa que implica grande sobre­carga cog­ni­tiva. Antes de escr­ever, o aluno tem que saber muito clara­mente com que final­i­dade o faz, para que des­ti­natários, que tipo de texto lhe pedem que pro­duza, sobre que assunto, etc. Se todos estes parâmet­ros forem claros e estiverem con­ve­nien­te­mente definidos, a tarefa, emb­ora difí­cil sem­pre, tornar-se-á menos árdua.
O docente deve dotar o aluno que quer tornar com­pe­tente na escrita de saberes proces­suais sobre como escr­ever. Deve, em con­junto com os alunos, preparar bem a tarefa, não ape­nas a nível da dis­cussão do tema e da preparação do vocab­ulário especí­fico a uti­lizar, mas tam­bém a nível das car­ac­terís­ti­cas for­mais da tipolo­gia tex­tual em que se inclui o texto que os alunos vão exper­i­men­tar pro­duzir. Por outro lado, deve insi­s­tir na neces­si­dade de se fazer sem­pre um plano antes do iní­cio da pro­dução escrita e, para que o aluno lhe perceba as van­ta­gens, há que começar por fazer esse plano em con­junto na turma ou grupo, depois, mais tarde, em gru­pos de dois ou três alunos e, quando cada miúdo já tiver perce­bido como se faz um plano e que van­ta­gens advêm desse processo para a pro­dução escrita, há que exi­gir sem­pre o plano a acom­pan­har o texto escrito pelo aluno. A par­tir de certa altura, se este processo cor­reu como devia, o aluno sen­tirá neces­si­dade de preparar o que vai escr­ever antes de começar a pro­duzir o seu texto escrito.
Tam­bém importa que o “escrevente” se habitue a reler com atenção o que acaba de escr­ever, o que não é tarefa fácil. Muitas vezes, pre­ocu­pado só em cap­tar a infor­mação, não “vê”, lit­eral­mente, os erros cometi­dos (às vezes, porque, não tendo deles con­sciên­cia, nem sabe que são erros). Pode pedir-se ao aluno que, depois de acabar de escr­ever, faça um resumo, do tipo: “No primeiro pará­grafo defendi que… no segundo mostrei que… no ter­ceiro con­tei um episó­dio que ilus­tra que… no quarto con­cluí, dizendo que…”.
Importa tam­bém fornecer aos alunos lis­tas de ver­i­fi­cação que os obriguem a olhar de novo para o que escreveram: “Acentuei grafi­ca­mente todas as palavras esdrúx­u­las? Ver­i­fiquei se, quando sep­a­rei ‘-mos’ do verbo, este ele­mento não fazia parte do mesmo, não era a marca da primeira pes­soa do plural?”, etc., etc.
Outra tarefa que se pode pedir aos alunos é que sub­lin­hem, no texto que acabaram de escr­ever, todas as palavras repeti­das. Num segundo momento, pede-se-lhes que as passem para uma folha, ver­i­f­i­cando se a repetição é necessária ou pode ser elim­i­nada: pela sub­sti­tu­ição do grupo nom­i­nal repetido por um pronome, por exem­plo, ou do nome por um sinón­imo, para referir ape­nas dois proces­sos sim­ples de elim­i­nar a repetição.
Há tem­pos, um grupo de três alunos estag­iários da Fac­ul­dade de Letras da Uni­ver­si­dade do Porto (a realizar está­gio em Alfena) apre­sen­tou, em sem­i­nário, um tra­balho inter­es­sante. Tratava-se de, a par­tir de um texto de um aluno e em con­junto, sub­lin­har as repetições, registando-as num quadro (chamava-se a activi­dade “Caça à repetição”). Depois, havia que pro­por a sub­sti­tu­ição da expressão repetida por um pronome, classificando-o e expli­cando a razão da sub­sti­tu­ição. Pas­sado um tempo, foi pro­posta aos alunos nova tarefa de escrita. De notar que as repetições pre­sentes nos tex­tos eram já menos. Os alunos realizaram uma tarefa semel­hante à ante­ri­or­mente lev­ada a cabo, desta vez em gru­pos de dois. Mais tarde ainda, o mesmo per­curso foi pro­posto, desta vez em tra­balho indi­vid­ual. Acon­tece que, nesta ter­ceira fase, os alunos faziam já muito pou­cas repetições inde­v­i­das. Caminhou-se, assim, do tra­balho mais acom­pan­hado para o indi­vid­ual, procu­rando que os alunos se fos­sem tor­nando pro­gres­si­va­mente mais autónomos. Se o cam­inho pro­posto se ateve ape­nas a um ponto muito con­creto e definido dos prob­le­mas de escrita dos alunos, a ver­dade é que os resul­ta­dos foram enco­ra­jadores.
De facto, os tex­tos dos nos­sos alunos são repet­i­tivos, pouco coesos, usam pouca sub­or­di­nação. Um exer­cí­cio útil é, a par­tir de duas frases sim­ples que apare­cem uma a seguir à outra (O menino chutou a bola. A bola par­tiu o vidro), ten­tar que os alunos formem uma só com­plexa (O menino chutou a bola que par­tiu o vidro ou A bola que o menino chutou par­tiu o vidro; neste caso, a oração sub­or­di­nada rel­a­tiva é facto de coesão tex­tual). Estes são pas­sos pequenos. Mas escr­ever é difí­cil. Cor­ri­gir as pro­duções escritas dos alunos tam­bém. Ensi­nar a escr­ever é um tra­balho de paciên­cia que requer muita atenção e peque­nas pro­postas conc­re­tas de treino, que dotem os alunos das destrezas necessárias.»
Isabel Mar­garida Duarte

Se é bom para os jornalistas do "Público", também é bom para nós


A propósito do Dia Internacional da Língua materna, lia-se o seguinte no blogue Página 23:
 
«O Dia Inter­na­cional da Lín­gua Materna, que hoje se cel­e­bra, ofer­ece um novo pre­texto para chamar a atenção para o facto de os jor­nais esco­lares, por muito ele­mentares que sejam, se rev­e­larem instru­men­tos de uma enorme util­i­dade para todos os pro­fes­sores que pre­ten­dem que os alunos escrevam mel­hor, algo que a exper­iên­cia tem ampla­mente demon­strado.
Sem o bom uso do por­tuguês e o cumpri­mento das regras gra­mat­i­cais, não há bom jor­nal­ismo, diz o Livro de Estilo do PÚBLICO. É, por isso, necessário prestar “uma per­ma­nente atenção a cer­tos vícios e incor­recções de lin­guagem”. O rigor da escrita não existe se não se obser­varem diver­sas regras. Entre as que são enun­ci­adas no Livro de Estilo, há umas quan­tas que tam­bém podem ser tidas em conta pelos jor­nal­is­tas esco­lares. É o caso, por exem­plo, das que acon­sel­ham a:

• redi­gir de forma sim­ples, con­cisa, clara e pre­cisa;
• preferir a frase afir­ma­tiva e o estilo directo;
• recusar a impre­cisão e a ambigu­idade;
• evi­tar as repetições, pre­cio­sis­mos, redundân­cias, caco­fo­nias, perío­dos lon­gos e o abuso de inter­calares;
• evi­tar, igual­mente, as frases feitas e os lugares-comuns, os chavões e as palavras de ordem;
• selec­cionar, hier­ar­quizar e sac­ri­ficar o acessório a favor do essencial.
»



Lido em http://blogues.publico.pt/pagina23/, consultado em 7/3/2013

Categorias da narrativa: o narrador

Lido em http://criarmundos.do.sapo.pt, consultado em 7/3/2013:
 
«Uma narrativa é uma história que é narrada. A voz que narra recebe o nome de narrador, aqueles a quem a história é narrada são designados por narratário. O narrador, mencionado frequentemente como o sujeito de enunciação, é um ser ficcional que existe somente na narrativa e não deve ser confundido com o autor, mesmo quando as duas posições se aproximam. O termo narratário, pelo contrário, pode-se referir ou não a seres ficcionais.
Uma narrativa destina-se sempre a ser lida, ou ouvida, por um leitor. Portanto, é ele o destinatário da narrativa, o chamado narratário ou, para se ser mais explícito, o narratário extradiegético, porque é exterior à história que se está a narrar. Mas também existem situações onde se pode encontrar um outro tipo de narratário, um que faz parte integrante da narrativa. Sempre que o narrador fala para uma personagem, transforma-a automaticamente no narratário intradiegético.
A posição do narrador no interior da narrativa varia de acordo com a forma como a sua presença se faz sentir:
  • Narrador Participante ou Narrador presente
    • Sempre que a figura do narrador participa na história.
    • A figura do narrador coincide com a de uma personagem.
    • A narração é feita na 1ª pessoa.
    • Pode ser:
      • Autodiegético
        • A figura do narrador coincide com a da personagem principal.
        • Geralmente, a história tem um carácter auto-biográfico.
        • mnemónica: auto > o eu é automaticamente a figura principal.

      • Homodiegético
        • A figura do narrador coincide com a de uma personagem secundária.
        • mnemónica: homo > o eu fala do homem que é a figura principal.

  • Narrador Não Participante ou Narrador Ausente
    • Sempre que a figura do narrador não participa nem interfere na história.
    • A narração é feita na 3ª pessoa.
    • É sempre:
      • Heterodiegético
        • mnemónica: hetero > fala-se sempre dos outros, nunca de nós.
Para além da presença, pode-se avaliar os conhecimentos que o narador possui sobre o que está a ser narrado. Normalmente fala-se da ciência do narrador:
  • Omnisciente
    • Este tipo de narrador "tudo" (omni) "conhece" (sciente); ou seja, é como um deus que tem acesso ao interior das personagens, assim como aos eventos passados e futuros.
    • Analisa as acções, os comportamentos, os sentimentos e os pensamentos das personagens.
    • As personagens podem ser apresentas de fora para dentro ou de dentro para fora.

  • Observador
    • Este tipo de narrador apenas sabe o que vê (observa), tendo que interpretar as palavras, os silêncios, as atitudes e os gestos das personagens para as conhecer.
    • As personagens só podem ser apresentadas de fora para dentro, à medida que o narrador as vai conhecendo.
    • Não tem acesso a eventos futuros nem a todos os eventos passados.
    • Pode apresentar dois tipos de visão ou focalização:
      • focalização externa
        • a visão do narrador é de alguém exterior à narrativa
        • apresenta os aspectos exteriores das personagens e dos eventos.
        • o narrador apenas conhece o que ouve e vê superficialmente.
      • focalização interna
        • a visão do narrador é de alguém inserido na narrativa
No entanto, o narrador pode ainda ser avaliado de acordo com a posição que toma face às personagens e acontecimentos.
  • Objectivo - quando relata as situações de forma imparcial e distanciada.
  • Subjectivo - quando se aproxima das situações que está a relatar para dar a sua opinião, julgando, aconselhando, elogiando ou censurando.»

Caraterísticas do romance neo-realista

Lido em http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt/, consultado em 7/3/2013
 
 
«1. A acção do romance neo-realista normalmente é aberta, sem progresso dramático linear, composta em geral por uma acumulação de factos, de quadros panorâmicos, só ligados entre si pelo narrador e pela homogeneidade de situações que são muitas vezes encaradas como símbolos. Desta forma, a intriga de tipo tradicional ou não existe ou corre diluída em fragmentações do género a reportagem». E, a princípio, muitas obras neo-realistas nem sequer conseguiam ultrapassar um vulgar nível panfletário.

2. As personagens são quase sempre colectivas, grupos antagónicos constituídos, de um lado, por representantes do capital e, de outro, por conjuntos de trabalhadores agrícolas e (mais raramente) de operários esmagados pela ganância de uma minoria dirigente, localizados em zonas bem determinadas. A estreita localização destes grupos trouxe para o neo-realismo português uma característica que o não abona: o regionalismo alentejano (só excepcionalmente superado).
Convém, no entanto, ter presente que temas citadinos e outros ligados à burguesia rural, foram tratados também em algumas obras neo-realistas, como O Dia Cinzento de Mário Dionísio, Anúncio de Alves Redol, Casa da Duna e Pequenos Burgueses de Carlos de Oliveira, Fuga de Faure da Rosa.

3. Estas personagens não figuram na acção como caracteres psicologicamente estudados mas apenas como tipos de uma classe. Se há um protagonista que merece destaque, é por ser o mais atingido entre a multidão ou por reflectir as reacções do todo. Por isso, o romance neo-realista abandona a personagem vista nos salões através da psicologia tradicional, para descer à personagem vulgar do campo ou da fábrica, conhecida por processos behavioristas, anotadores de um comportamento externo que se reduz a gestos de protesto social e também a atitudes de revolta contra o fatalismo do meio geográfico. Diante dos factores materiais e das forças sociais que as bloqueiam, as personagens neo-realistas não esboçam qualquer atitude de espiritualidade.

4. O autor observa as situações com neutralidade pelo menos aparente, coloca os protagonistas no ambiente próprio, deixa-os agir e viver uma vida muito real; faz depois «jornalismo», reportagem. Selecciona, no entanto, as situações a analisar e, quando calha, põe-se a interpretar os factos em função do fim que tem em vista. Com efeito, os neo-realistas são radicalmente objectivos, recriando a realidade social. Mas o subjectivismo não lhes é de todo estranho, pois não se limitam a recriar a realidade: orientam-na para transformações profundas com que sonham e em que estão empenhados.

5. Minimizam os neo-realistas o cuidado da forma (que julgam encobrir ou pelo menos esfumar a verdade do romance) e, uma vez ou outra, no afã de retratar a realidade do modo mais simples possível, chegam a descurar as regras gramaticais. Foi neste sentido que a polémica com os presencistas orientou inicialmente a estética da escola. Contra este desprezo da forma insurgiu-se, como dissemos já, Mário Dionísio.
O autor neo-realista gosta de pôr na boca das personagens a linguagem popular regional, como se a tivesse gravado do natural em fita magnética e a repetisse. Leva o diálogo muitas vezes a assumir funções narrativas. Emprega frases curtas, bem adaptadas ao pensamento conciso que o domina. Com tendência para a substantivação do real, usa moderadamente o adjectivo.»

segunda-feira, 4 de março de 2013

Cenário de correção do teste de avaliação


Cenário de resposta

1.       Iniciando-se com uma notação temporal, “Faz frio”, o poema prossegue com uma descrição, em forma de reportagem, de episódios da vida da cidade, que o sujeito lírico relata no presente do indicativo: “(…) os calceteiros (…) calçam (…) a rua.”, “gritam as peixeiras”, “luzem uns barracões” ou “tomam por outra parte os viandantes”. Atento à realidade circundante, o sujeito poético recorre a formas verbais - conjugadas no mesmo tempo e modo verbal - que denotam a deambulação: “Eu tudo encontro alegremente exacto” e “(…) um pára enquanto eu passo”. A crónica urbana prossegue com a “brusca” aparição de uma figura feminina individualizada. O eu-repórter informa-nos que se trata de uma atriz que trabalha à noite e que “Caminha agora para o seu ensaio”.

 

2.       Trata-se de uma manhã (cf. estrofe 3, verso 3) de Dezembro, fria (cf. estrofe 1, verso 1 e estrofe 2, verso 3 entre outros) (cf. estrofe 15, verso 4) mas luminosa (cf. estrofe 1, verso 2, estrofe 2, verso 2, entre outros).

 
3.1 As peixeiras e os calceteiros representam o povo. As primeiras são caraterizadas graças a sensações auditivas (“gritam”) e de movimento (“Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita”). Os segundos começam por ser descritos com recurso a sensações visuais, onde os adjetivos se sucedem (“terrosos e grosseiros”, “duros, baços”) e de movimento (“Com lentidão”, “morosos”). Um pouco acima na escala social encontra-se o mestre, que, “com um ar ralaço/ E manso”, vigia os trabalhadores. O próprio eu poético, “flâneur” ocioso que frequenta os teatros onde a “actrizita” se apresenta, personifica a burguesia urbana.

 
3.2. Os calceteiros são equiparados a animais de carga: “Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!”. Em contraponto, a figura feminina é um animal gracioso (“um perfil direito que se aguça; /E ar matinal de quem saiu da toca, / Um afigura fina”) face aos calceteiros, “(…) animais comuns (…) /Eles, bovinos, másculos, ossudos,/Encaram-na sanguínea, brutamente”). Tanto num caso como noutro, trata-se de uma perspetiva disfórica. Porém, o eu poético apieda-se dos trabalhadores braçais "Que vida tão custosa! Que diabo!” e demoniza a figura da atriz  “O demonico arrisca-se, atravessa/Covas, entulhos, lamaçais (…)/ Com seus pezinhos rápidos, de cabra!”.

 

3.3.  Os trabalhadores braçais são oriundos do campo (“Os filhos das lezírias, dos montados; / Os da planície,altos, aprumados; /Os das montanhas, baixos trepadores”), enquanto o eu poético, a “atrizita” e os viandantes representam a cidade, cujo processo de urbanização está em curso. Como frequentemente sucede em Cesário Verde, irrompem, na cidade, breves apontamentos camprestes, como sucede com os “Quintalórios velhos com parreiras”, associados à “gente pobrezita”. O próprio observador, inspirado pelo bucolismo, “a friagem (…) / Os ares, o caminho”, afirma que lhe sabe a “campo, a lenha, a agricultura”.

 

4.       Neste excerto são notórios os contrastes sociais, patentes na humildade dos trabalhadores braçais face aos ociosos ou à “actrizita”, envolta no seu casaco à russa. A profissão desta última permite ao eu poético inserir nesta descrição diurna e solar (“Vibra uma imensa claridade crua.”) um apontamento noturno (“A actriz que tanto cumprimento / E a quem, à noite, na plateia, atraio / Os olhos lisos como polimento!”). Registe-se, por último, a oposição entre a cidade e o campo, que podemos inferir na “longa rua” que está a ser calcetada e nos “barracões de gente pobrezita”, que ainda mantêm uns “quintalórios velhos com parreiras”.

 

5.       O poema abunda em sensações visuais, olfativas, táteis, auditivas e de movimento. A visão é convocada pelas notações atmosféricas, como “Uma imensa claridade crua”, “o descoberto Sol”, “as poças de água” que refletem a “molhada casaria”, e cujos “charcos brilham”;  bem como pelas descrições dos calceteiros, “terrosos” (…), dos corpos das peixeiras, da “actrizita” e dos quintalórios. Há sensações táteis nas “calosas mãos gretadas”, olfativas no cheiro “a fogo, a sílex, a ferragem” e de paladar no sabor “a campo, a lenha, a agricultura”. As inúmeras sensações de movimento das classes trabalhadoras (as peixeiras que “dão aos rins”, os calceteiros e os cavadores no seu labor surgem em contraponto com a lentidão do mestre e a súbita aparição da atriz: “bruscamente”). Se as peixeiras, numa notação auditiva, “gritam”, o ferro e a pedra “retinem alto pelo espaço fora / Com choques rijos, ásperos, cantantes”. Esta abundância sensorial é referida pelo eu poético, quando afirma “Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. / E tangem-me, excitados, sacudidos, / O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!”.

 

6.       O texto pode ser dividido em três partes. Na primeira, que se conclui na sexta estrofe (inclusive), o eu poético descreve o tempo atmosférico, o labor dos calceteiros e o cenário (quintais, alvenaria) que os circunda. Na segunda, circunscrita entre a sétima e a décima primeira estrofes, surge claramente, graças à irrupção do pronome pessoal eu e de formas verbais conjugadas na primeira pessoa (Lavo, refresco, limpo, tangem-me, pede-me…), o sujeito poético implica-se no texto e no cenário e inscreve o seu corpo, que deambula, entre os dos restantes figurantes (“(…) um pára enquanto eu passo”). A partir da décima segunda estrofe, surge, introduzida pelo advérbio bruscamente, uma nova figura, que contrasta ainda mais com as anteriores, a atriz, que, “desempenhando o seu papel na peça” pisa o chão que os calceteiros ainda não pavimentaram. Esse contraste, de género (masculino/feminino), de proveniência (rural/urbano), de tipologia de trabalho (braçal/não braçal) e de classe (povo/burguesia) surge marcado pela conjunção porém.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Texto expositivo-argumentativo (modelo tese-antítese-síntese)


Tema: É lícito, na atual conjuntura, apresentar um anúncio publicitário onde alguém afirma desejar uma carteira Chanel?

Tópicos a abordar

+

·    objeto esteticamente bonito

·     frontalidade

·    Objeto durável e intemporal (ecologia, etc.)

·    Pode admitir-se que se tratava de um desejo hipotético ou até irrealizável

-

·    A crise

·    Preço excessivo do objeto

·    Materialismo demonstrado

·    futilidade

·    insensibilidade

·    quem tem $, imita-a (ostentação)

·    quem não tem $: compra imitações – economia paralela; fica frustrada

Texto expositivo-argumentativo

Modelo textual: tese – antítese – síntese

Num dos anúncios publicitários que a Samsung lançou no “Youtube” acerca dos desejos para 2013 de famosos ligados ao mundo da moda, a jovem entrevistada, Pepa, afirmou querer uma carteira Chanel. Esta declaração começou por causar polémica entre os internautas, seguindo-se a passagem do vídeo nos telejornais e, finalmente, várias entrevistas à jovem.

Esta polémica pode ser encarada de vários pontos de vista. O vídeo da Samsung foi criticado pelo preço excessivo da carteira Chanel, pelo facto de o país estar em crise, pela insensibilidade demonstrada por Pepa, bem como pela sua futilidade e materialismo. Em contrapartida, é possível examinar o desejo da jovem por outro prisma. Assim, além de o objeto ambicionado ser esteticamente bonito, é também durável e intemporal. Se Pepa só comprasse esta carteira e a usasse ao longo da vida, transmitindo-a aos descendentes, esta aquisição poderia ser encarada como um valor de uso e a sua atitude poderia ser classificada como ecológica. Por último, é possível que Pepa não estivesse a formular um desejo concreto, mas, sim, a materializar um sonho irrealizável. Admitindo que não fosse esse o caso, então a atitude da jovem poderia ser qualificada como honesta e frontal.

A crise em que vivemos deita, todavia, por terra todos estes argumentos. Mais do que frontal, Pepa foi inconsciente, não se dando conta de que as suas afirmações são ofensivas para a maioria dos seus congéneres. Quanto à possibilidade de se tratar de uma carteira para a vida, é desmentida pela frivolidade da jovem, cujo perfil aponta no sentido de uma “alta rotatividade” de roupas e acessórios.

Em conclusão, a “Samsung” procedeu bem ao retirar o vídeo do “Youtube”, uma vez que pode redundar em  consequências nefastas. Com efeito, quem tenha posses pode ser influenciado por este desejo consumista e comprar um objeto de que, verdadeiramente, não tem necessidade. Trata-se, genericamente, de uma atitude de ostentação, destinada a mostrar-se superiores às outras pessoas e privilegiando o ter em detrimento do ser.

Quanto às pessoas que não podem comprar bens desta natureza, podem ter tendência para comprar bens de que não carecem, ou imitações de objetos de marca. Tal atitude é pouco ecológica e pode favorecer a economia paralela. Esquecendo-se que é mais importante ser do que ter ou parecer, estas pessoas podem desenvolver frustrações e fomentar a revolta social.