domingo, 2 de junho de 2013

A questão do paralelismo perfeito nas cantigas de amigo

«A cantiga de amigo, que, como sabemos, resulta do aproveitamento estético de uma tradição lírica galego-portuguesa, caracteriza-se por uma estrutura estrófica e rítmica que aproxima a poesia da música. Com efeito, a cantiga de amigo de molde tradicional obedece à técnica paralelística: é uma paralelística perfeita ou pura. Nestas cantigas, os vários elementos versificatórios – pausas, ritmo e rima – estão subordinados a um jogo de simetrias, em que predomina a repetição, como princípio estruturador.

Assim, a cantiga é constituída por dois coros que cantam alternadamente, mas o segundo coro repete, pelo processo do leixa-pren, a estrofe cantada pelo primeiro coro, com alteração da palavra rimante, pois alternam as rimas assoantes, em i e a (amigo/amado, saído/passado" etc.). E cada coro retoma, no início de nova copla o último verso que canta, repetindo-o integralmente, e acrescenta novo verso, a seguir repetido pelo mesmo processo. A cantiga paralelística pura é formada de três pares de coplas. Eis, esquematicamente representada, a técnica paralelística: A Br/ A'B'r/BCr/B'C'r/CDr/C'D'r; ou, transcrevendo de outro modo: aa'Wbb'R/a'a''R/b'b"R... O refrão acentua a sugestão musical da cantiga e, geralmente, é sintáctica e semanticamente independente do corpo da copla, embora, portador de valor imagístico, concretize o estado de alma da moça ou defina o tema da cantiga.

(...)

No entanto, nem todas as cantigas de amigo apresentam esta estrutura' há as cantigas de paralelismo atenuado, e as de refrão, geralmente formado de dois versos, e que pode aparecer intercalado na copla, como marca de influência culta, ou servir-lhe de remate, como é próprio do lirismo popular.

O paralelismo inspira, porém, grandes poetas, como D. Dinis, que soube valorizar esteticamente o processo adoptado nas cantigas tradicionais, deixando-nos composições que reconstituem, por meio de hábil técnica, a espontaneidade e frescura do lirismo popular. E Gil Vicente elaborou também literariamente muitas cantigas paralelísticas com que soube animar os seus autos pastoris, e de que se serviu para pôr em cena, com vivacidade, os ambientes rústicos em que se movem muitas das suas personagens.

No entanto, a cantiga de amigo não se encontra necessariamente ligada à vida do campo, pois enquadra-se frequentemente num meio burguês, reflectindo o ambiente doméstico e familiar, marcado pela presença feminina, visto que a menina, na ausência do chefe de família, vive sob a tutela da mãe, embora por vezes se rebele contra as suas imposições. Assim a cantiga não exprime só o drama sentimental da moça (o que, em linguagem trovadoresca, se chamava «cuidado»), provocado pela ausência do amigo, como também testemunha as condições familiares da época, em que a mãe possui autoridade e exerce vigilância sobre a filha.

Assistimos, portanto, à intervenção da mãe, a quem a moça pede licença para ir falar com o namorado (Mia madre, venho-vos rogar) e toma como confidente da sua paixão (Madre, passou per aqui um cavaleiro); com ela desabafa a raiva ou «sanha», provocada pela traição do namorado (Ai madre, ben vos digo), ou confessa-lhe a fidelidade amorosa, que a leva a aspirar à morte, embora reconheça que foi traída (Non chegou, madr', o meu amigo). E também ouvimos os conselhos da mãe, que tenta chamar a filha à realidade, convencendo-a da indiferença do amigo (Filha, o que queredes ben), embora se encontrem mães que preparam o encontro dos namorados e protegem os seus amores, exigindo, porém, o maior sigilo e discrição (Pois vós, filha, queredes mui gran ben).

Nem só à mãe se dirigem as confidências da Moça: também as amigas (nesta época a amiga recebia, por vezes, o tratamento familiar de «mana») partilham da sua alegria, provocada pelo regresso do amigo (Amigas, o que mi quer ben), ou pela certeza de ser amada, o que pode suscitar comentários irónicos e azedos da confidente (Amiga, vistes amigo); e com a amiga desabafa a dor pela distância a que o amigo se encontra, ao mesmo tempo que lhe mostra os presentes de noivado, então chamados «dõos» ou «dons de amor» (Quand' eu subi nas torres sobe-lo mar), ou solicita companhia para ir ao encontro do namorado que andava à caça (Vaiamos, irmana, vaiamos dormir). Mas à falta de menina confidente dialoga com a Natureza, o que constitui uma característica fundamental do lirismo galego-português interroga as ondas e pede-lhes notícias do amigo (Ondas do mar de Vigo) e, na Primavera, no pinheiral em flor, dirige o mesmo pedido ansioso às flores (Ai flores, ai flores do verde pino), as quais, humanizadas por tão grande desgosto, a consolam (Vós me perguntades polo vosso amigo).

Assim, a cantiga de amigo constitui essencialmente a expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, liberta dos convencionalismos a que obedece a cantiga de amor.»

Maria Ema Tarracha Ferreira, Poesia e Prosa Medievais, Ulisseia

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