Cenário de resposta
1. Iniciando-se
com uma notação temporal, “Faz frio”, o poema prossegue com uma descrição, em
forma de reportagem, de episódios da vida da cidade, que o sujeito lírico relata
no presente do indicativo: “(…) os calceteiros (…) calçam (…) a rua.”, “gritam
as peixeiras”, “luzem uns barracões”
ou “tomam por outra parte os
viandantes”. Atento à realidade circundante, o sujeito poético recorre a formas
verbais - conjugadas no mesmo tempo e modo verbal - que denotam a deambulação: “Eu
tudo encontro alegremente exacto” e
“(…) um pára enquanto eu passo”. A crónica urbana
prossegue com a “brusca” aparição de uma figura feminina individualizada. O
eu-repórter informa-nos que se trata de uma atriz que trabalha à noite e que “Caminha
agora para o seu ensaio”.
2. Trata-se
de uma manhã (cf. estrofe 3, verso 3) de Dezembro, fria (cf. estrofe 1, verso 1
e estrofe 2, verso 3 entre outros) (cf. estrofe 15, verso 4) mas luminosa (cf.
estrofe 1, verso 2, estrofe 2, verso 2, entre outros).
3.1 As peixeiras
e os calceteiros representam o povo. As primeiras são caraterizadas graças a
sensações auditivas (“gritam”) e de movimento (“Em pé e perna, dando aos rins
que a marcha agita”). Os segundos começam por ser descritos com recurso a
sensações visuais, onde os adjetivos se sucedem (“terrosos e grosseiros”,
“duros, baços”) e de movimento (“Com lentidão”, “morosos”). Um pouco acima na
escala social encontra-se o mestre, que, “com um ar ralaço/ E manso”, vigia os
trabalhadores. O próprio eu poético, “flâneur” ocioso que frequenta os teatros
onde a “actrizita” se apresenta, personifica a burguesia urbana.
3.2. Os
calceteiros são equiparados a animais de carga: “Homens de carga! Assim as
bestas vão curvadas!”. Em contraponto, a figura feminina é um animal gracioso
(“um perfil direito que se aguça; /E ar matinal de quem saiu da toca, / Um
afigura fina”) face aos calceteiros, “(…) animais
comuns (…) /Eles, bovinos, másculos, ossudos,/Encaram-na sanguínea,
brutamente”). Tanto num caso como noutro, trata-se de uma perspetiva disfórica.
Porém, o eu poético apieda-se dos trabalhadores braçais "Que vida tão custosa!
Que diabo!” e demoniza a figura da atriz
“O demonico arrisca-se, atravessa/Covas, entulhos, lamaçais (…)/ Com
seus pezinhos rápidos, de cabra!”.
3.3. Os trabalhadores braçais são oriundos do campo
(“Os filhos das lezírias, dos montados; / Os da planície,altos, aprumados; /Os
das montanhas, baixos trepadores”), enquanto o eu poético, a “atrizita” e os
viandantes representam a cidade, cujo processo de urbanização está em curso.
Como frequentemente sucede em Cesário Verde, irrompem, na cidade, breves
apontamentos camprestes, como sucede com os “Quintalórios velhos com parreiras”,
associados à “gente pobrezita”. O próprio observador, inspirado pelo bucolismo,
“a friagem (…) / Os ares, o caminho”, afirma que lhe sabe a “campo, a lenha, a
agricultura”.
4.
Neste excerto são notórios os contrastes
sociais, patentes na humildade dos trabalhadores braçais face aos ociosos ou à
“actrizita”, envolta no seu casaco à russa. A profissão desta última permite ao
eu poético inserir nesta descrição diurna e solar (“Vibra uma imensa claridade
crua.”) um apontamento noturno (“A actriz que tanto cumprimento / E a quem, à
noite, na plateia, atraio / Os olhos lisos como polimento!”). Registe-se, por
último, a oposição entre a cidade e o campo, que podemos inferir na “longa rua”
que está a ser calcetada e nos “barracões de gente pobrezita”, que ainda mantêm
uns “quintalórios velhos com parreiras”.
5.
O poema abunda em sensações visuais, olfativas,
táteis, auditivas e de movimento. A visão é convocada pelas notações
atmosféricas, como “Uma imensa claridade crua”, “o descoberto Sol”, “as poças
de água” que refletem a “molhada casaria”, e cujos “charcos brilham”; bem como pelas descrições
dos calceteiros, “terrosos” (…), dos corpos das peixeiras, da “actrizita” e dos
quintalórios. Há sensações táteis nas “calosas mãos gretadas”, olfativas no
cheiro “a fogo, a sílex, a ferragem” e de paladar no sabor “a campo, a lenha, a
agricultura”. As inúmeras sensações de movimento das classes trabalhadoras (as
peixeiras que “dão aos rins”, os calceteiros e os cavadores no seu labor surgem
em contraponto com a lentidão do mestre e a súbita aparição da atriz:
“bruscamente”). Se as peixeiras, numa notação auditiva, “gritam”, o ferro e a
pedra “retinem alto pelo espaço fora / Com choques rijos, ásperos, cantantes”.
Esta abundância sensorial é referida pelo eu poético, quando afirma “Lavo,
refresco, limpo os meus sentidos. / E tangem-me, excitados, sacudidos, / O
tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!”.
6.
O texto pode ser dividido em três partes. Na
primeira, que se conclui na sexta estrofe (inclusive), o eu poético descreve o
tempo atmosférico, o labor dos calceteiros e o cenário (quintais, alvenaria)
que os circunda. Na segunda, circunscrita entre a sétima e a décima primeira
estrofes, surge claramente, graças à irrupção do pronome pessoal eu e de formas verbais conjugadas na
primeira pessoa (Lavo, refresco, limpo, tangem-me, pede-me…), o sujeito poético
implica-se no texto e no cenário e inscreve o seu corpo, que deambula, entre os
dos restantes figurantes (“(…) um pára enquanto eu passo”). A partir da décima
segunda estrofe, surge, introduzida pelo advérbio bruscamente, uma nova figura, que contrasta ainda mais com as
anteriores, a atriz, que, “desempenhando o seu papel na peça” pisa o chão que
os calceteiros ainda não pavimentaram. Esse contraste, de género
(masculino/feminino), de proveniência (rural/urbano), de tipologia de trabalho (braçal/não
braçal) e de classe (povo/burguesia) surge marcado pela conjunção porém.
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