segunda-feira, 4 de março de 2013

Cenário de correção do teste de avaliação


Cenário de resposta

1.       Iniciando-se com uma notação temporal, “Faz frio”, o poema prossegue com uma descrição, em forma de reportagem, de episódios da vida da cidade, que o sujeito lírico relata no presente do indicativo: “(…) os calceteiros (…) calçam (…) a rua.”, “gritam as peixeiras”, “luzem uns barracões” ou “tomam por outra parte os viandantes”. Atento à realidade circundante, o sujeito poético recorre a formas verbais - conjugadas no mesmo tempo e modo verbal - que denotam a deambulação: “Eu tudo encontro alegremente exacto” e “(…) um pára enquanto eu passo”. A crónica urbana prossegue com a “brusca” aparição de uma figura feminina individualizada. O eu-repórter informa-nos que se trata de uma atriz que trabalha à noite e que “Caminha agora para o seu ensaio”.

 

2.       Trata-se de uma manhã (cf. estrofe 3, verso 3) de Dezembro, fria (cf. estrofe 1, verso 1 e estrofe 2, verso 3 entre outros) (cf. estrofe 15, verso 4) mas luminosa (cf. estrofe 1, verso 2, estrofe 2, verso 2, entre outros).

 
3.1 As peixeiras e os calceteiros representam o povo. As primeiras são caraterizadas graças a sensações auditivas (“gritam”) e de movimento (“Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita”). Os segundos começam por ser descritos com recurso a sensações visuais, onde os adjetivos se sucedem (“terrosos e grosseiros”, “duros, baços”) e de movimento (“Com lentidão”, “morosos”). Um pouco acima na escala social encontra-se o mestre, que, “com um ar ralaço/ E manso”, vigia os trabalhadores. O próprio eu poético, “flâneur” ocioso que frequenta os teatros onde a “actrizita” se apresenta, personifica a burguesia urbana.

 
3.2. Os calceteiros são equiparados a animais de carga: “Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!”. Em contraponto, a figura feminina é um animal gracioso (“um perfil direito que se aguça; /E ar matinal de quem saiu da toca, / Um afigura fina”) face aos calceteiros, “(…) animais comuns (…) /Eles, bovinos, másculos, ossudos,/Encaram-na sanguínea, brutamente”). Tanto num caso como noutro, trata-se de uma perspetiva disfórica. Porém, o eu poético apieda-se dos trabalhadores braçais "Que vida tão custosa! Que diabo!” e demoniza a figura da atriz  “O demonico arrisca-se, atravessa/Covas, entulhos, lamaçais (…)/ Com seus pezinhos rápidos, de cabra!”.

 

3.3.  Os trabalhadores braçais são oriundos do campo (“Os filhos das lezírias, dos montados; / Os da planície,altos, aprumados; /Os das montanhas, baixos trepadores”), enquanto o eu poético, a “atrizita” e os viandantes representam a cidade, cujo processo de urbanização está em curso. Como frequentemente sucede em Cesário Verde, irrompem, na cidade, breves apontamentos camprestes, como sucede com os “Quintalórios velhos com parreiras”, associados à “gente pobrezita”. O próprio observador, inspirado pelo bucolismo, “a friagem (…) / Os ares, o caminho”, afirma que lhe sabe a “campo, a lenha, a agricultura”.

 

4.       Neste excerto são notórios os contrastes sociais, patentes na humildade dos trabalhadores braçais face aos ociosos ou à “actrizita”, envolta no seu casaco à russa. A profissão desta última permite ao eu poético inserir nesta descrição diurna e solar (“Vibra uma imensa claridade crua.”) um apontamento noturno (“A actriz que tanto cumprimento / E a quem, à noite, na plateia, atraio / Os olhos lisos como polimento!”). Registe-se, por último, a oposição entre a cidade e o campo, que podemos inferir na “longa rua” que está a ser calcetada e nos “barracões de gente pobrezita”, que ainda mantêm uns “quintalórios velhos com parreiras”.

 

5.       O poema abunda em sensações visuais, olfativas, táteis, auditivas e de movimento. A visão é convocada pelas notações atmosféricas, como “Uma imensa claridade crua”, “o descoberto Sol”, “as poças de água” que refletem a “molhada casaria”, e cujos “charcos brilham”;  bem como pelas descrições dos calceteiros, “terrosos” (…), dos corpos das peixeiras, da “actrizita” e dos quintalórios. Há sensações táteis nas “calosas mãos gretadas”, olfativas no cheiro “a fogo, a sílex, a ferragem” e de paladar no sabor “a campo, a lenha, a agricultura”. As inúmeras sensações de movimento das classes trabalhadoras (as peixeiras que “dão aos rins”, os calceteiros e os cavadores no seu labor surgem em contraponto com a lentidão do mestre e a súbita aparição da atriz: “bruscamente”). Se as peixeiras, numa notação auditiva, “gritam”, o ferro e a pedra “retinem alto pelo espaço fora / Com choques rijos, ásperos, cantantes”. Esta abundância sensorial é referida pelo eu poético, quando afirma “Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. / E tangem-me, excitados, sacudidos, / O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!”.

 

6.       O texto pode ser dividido em três partes. Na primeira, que se conclui na sexta estrofe (inclusive), o eu poético descreve o tempo atmosférico, o labor dos calceteiros e o cenário (quintais, alvenaria) que os circunda. Na segunda, circunscrita entre a sétima e a décima primeira estrofes, surge claramente, graças à irrupção do pronome pessoal eu e de formas verbais conjugadas na primeira pessoa (Lavo, refresco, limpo, tangem-me, pede-me…), o sujeito poético implica-se no texto e no cenário e inscreve o seu corpo, que deambula, entre os dos restantes figurantes (“(…) um pára enquanto eu passo”). A partir da décima segunda estrofe, surge, introduzida pelo advérbio bruscamente, uma nova figura, que contrasta ainda mais com as anteriores, a atriz, que, “desempenhando o seu papel na peça” pisa o chão que os calceteiros ainda não pavimentaram. Esse contraste, de género (masculino/feminino), de proveniência (rural/urbano), de tipologia de trabalho (braçal/não braçal) e de classe (povo/burguesia) surge marcado pela conjunção porém.

Sem comentários:

Enviar um comentário