domingo, 28 de outubro de 2012

Quem foi... António Nobre? I


«Nasceu no Porto, em 1867. Depois dos primeiros estudos, segue para Coimbra com o intuito de estudar Direito, mas desgosta-se do ambiente académico, sobretudo do trote de iniciação, que lhe causa profundo vexame. Em consequência, refugia-se na sua "torre de Anto", longe do bulício e das sebentas. É já, nessa altura, um poeta hipersensível, todo voltado para dentro de si e para os distantes anos da infância em sua cidade natal. Reprovado duas vezes, segue para Paris a fim de levar a cabo seu intento de bacharelar-se, o que finalmente consegue, não sem grandes sofrimentos morais. Esses anos parisienses são-lhe de grande impor-tância, particularmente do ângulo poético: sua poesia amadurece e frutifica num volume, o Só, publicado em 1892, sob a inspiração do Simbolismo Francês, sobretudo de Verlaine, graças à consanguinidade de temperamento e sensibilidade. Já nessa altura, senão antes, começam a aparecer-lhe os primeiros sintomas da tuberculose. De volta a Portugal, revisita os lugares queridos da -infância em busca de saúde, que sente fugir-lhe progressivamente. A conselho médico, vai à Madeira, à Suíça e a Nova Iorque: tudo em vão, pois a moléstia lhe havia minado de vez o débil organismo. Regressa definitivamente aos penates, à espera da morte, que sobrevém no mesmo ano em que falece Eça de Queirós: 1900. Morre com apenas trinta e três anos.
Ao falecer ainda moço, António Nobre deixava publicado um único livro, o Só (1892), e alguns inéditos que vieram a constituir dois volumes, as Despedidas (1902) e os Primeiros Versos (1921). Dotado de estranha e refinada sensibilidade, que o fazia um esquizóide e um alfenim, facilmente se deixava atingir pelas pessoas com as quais era obrigado a entrar em contacto e pelas circunstâncias adversas que teve de enfrentar pela vida fora. Desse modo, na essência mesma de sua hipersensibilidade era um romântico acabado. Sua cosmovisão comprova-o nitidamente: sentimental, emotivo, introspectivo até onde alguém pode ser, exilou-se totalmente da realidade circundante e passou a viver isolado, em sua "torre de Anto" real ou fictícia, entregue a um solipsismo doentio e narcisista.
Esse narcisismo denotava um temperamento passivo, feminóide, e uma debilidade psíquica e física, que o tornavam presa fácil das emoções mórbidas e da tuberculose que o vitimou. Mis ainda: fazia-se acompanhar duma nota de autocomiseracção lo transformada numa melancolia e num tédio ensombrados pela p sença da Morte, ao mesmo tempo desejada e odiada. Por s vez, a autocontemplação enche-se de ternura e de piedade consoladora, e gera um pessimismo de derrotado antes de lutar, próprio de quem contempla a inexorável passagem das horas sem poder interromper-lhe a progressão, e, pior ainda, tem a dolorosa sensação de que a vida se esvai inútilmente, antes de ser vivida.
O resultado é que o poeta acaba vendo tudo através duma cortina de lágrimas, tomado dum sentimento ambíguo e entristecedor: a um só tempo, desadora a vida porque esta lhe parece schopenhauerianaménte um fio ininterrupto de dores, e lastima abandoná-la. Dela recebe não só amarguras, mas também um gozo estético e afectivo, no amor da Mulher ("Purinha": "Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,/ Toda cheia de véus, como uma Espu-ma,/ O Senhor Padre me dará para mim"); na contemplação comovida da terra natal e no encontro, em plenitude enternecida, de seus familiares ("Viagens na Minha Terra") ; no congraçamento com os deserdados da fortuna, nos quais o poeta enxergava irmãos de dores e aflições ("Males de Anto": "Aos pobrezinhos enxugava-lhes o suor./ A minha bolsa pequenina de estudante,/ Era pros pobres."); e no encontro de outros valores espirituais. Mas o voltar-se para fora é ainda como se estivesse flectido para dentro de si, pois o poeta incorpora os seres e as paisagens que contempla como se fossem emanações orgânicas do seu "eu" hipertrofiado às raias de se tornar do tamanho do mundo.
Entretanto, ao debruçar-se absortamente em seu mundo interior, António Nobre realiza uma espécie de amarga reflexão sentimental de sua via-crucis dolorosa até à cova, sob o acalanto da Morte, do Fado inamovível ("A Morte, agora, é a minha Ama / Que bem sabe acalentar!"). E ao meditar a sua obsessão, o poeta desintegra-se paulatinamente, como se bastasse lembrar para diminuir, em vez de aumentar, o espaço que o separa do Nada temi-do, odiado e a um só tempo esperado. Como se nota, desencadeia-se um movimento em espiral que envolve toda a poesia de alguém que se julgava "o poeta-nato, o lua, o santo, o cobra!", um poeta pessoalíssimo, senhor dum individualismo narcisista que o afastou de Maior influência constrangedora: um poeta portuguêsíssimo, pela retomada da tradição que remonta à Idade Média e pelo culto enternecido da paisagem e da gente Portuguesa.
Dessa forma, para António Nobre iam convergindo várias linhas poéticas em curso no seu tempo: algumas delas vinham do Romantismo, concentradas na atitude da pose e da vaidade em feminino, da artificialidade e da máscara teatral, herança de Garrett, seu mestre em dandismo e em poesia de requinte e finura: "Ora, às ocultas, eu trazia / No seio, um livro e lia, e lia, / Garrett da minha paixão... ". Ao seu neogarrettismo se juntava a presença de notas trazidas pelos ventos novos do Simbolismo (as vaguidades, as sinestesias, o mistério das coisas, o gosto do oculto, do supersticioso, as atmosferas neblinosas, etc.). Ainda se observa em António Nobre qualquer coisa da poesia do quotidiano realista, mas, como sempre, acomodado ao seu peculiar feitio de sensitivo incapaz duma rebeldia heróica: "Olha! Estudantes, dando o braço às raparigas, / Caras de leite, olhos de luar, tranças d'estrigas".
Entenda-se, porém, que tudo isso constituem forças estimuladoras da atmosfera literária em que António Nobre se formou, e não influência despersonalizadora: o poeta só aceitava os estímulos externos que lhe correspondiam às mais íntimas propensões de romântico por natureza e sensibilidade. Em suma: era demasiado egocêntrico para seguir outros caminhos que não os descortinados por sua intuição, faculdade que nele parece coincidir com o chamado sexto sentido feminino, tão aguçada é no registo de vibrações mínimas da sensibilidade. Por conseguinte, torna-se difícil encaixar no Simbolismo um poeta dessa categoria, ainda para mais preso medularmente ao solo natal, a ponto de exclamar nas "Viagens na Minha Terra": "6 paisagem etérea e doce, / Depois do Ventre que me trouxe, / A ti devo em tudo que sou! ".
A esse portuguêsismo garrettiano, telúrico e apaixonado, vincula-se outra característica de António Nobre: poeta estritamente emocional (com todas as restrições e sentidos que implica tal classificação); nele a razão ou a inteligência exerce pouca ou nenhuma influência. Pletórico de emoção, para ele o mundo; é Portugal, "essa doida terra", "cheia de Cor, de Luz, de
Som": uma visão estética, portanto, e emotiva, semelhante à da mulher, para não dizer que prolonga a do menino de "olhos tão doces" que foi. António Nobre vive obcecado com a infância, seu "paraíso perdido": "Menino e moço, tive uma Torre de leite, / Torre sem par!"
Tudo isso, mais o seu ensimesmamento de hipersensível alheio aos ruídos da vida literária, ajuda a explicar que não alcançasse em vida a nomeada de Eugénio de Castro.
Entretanto, soube realizar o que o outro não pode: graças à anarquia de base que lhe punha romanticamente a alma em torvelinho, colaborou para libertar o sentimento poético da opressão das preceptivas e códigos literários, aceitos consciente ou inconscientemente por quase todos. Essa como incapacidade para aderir às normas, esse inconformismo natural, tornou-o verdadeiramente um precursor da poesia moderna, pelo menos nalguns aspectos de sua obra. António Nobre promoveu, em poesia, a revolução de linguagem levada a efeito por Garrett: introduziu-lhe o tom narrativo, oral, coloquial quase prosaico, numa arritmia às vezes acompanhada do emprego de versos assimétricos.
Está certo que estes, Eugénio de Castro os empregava desde o Oaristos, mas sem convicção, como se praticasse um mero exercício de expressão poética. Em António Nobre, ganham um travo moderno, graças ao à-vontade do poeta, que nos dá a impressão de criar seus poemas à medida que fala, em vez de construí-los artesanalmente, no silêncio de seu gabinete de trabalho.
O tempo constitui outra força-motriz da poesia de António Nobre, em que também se patenteia seu cariz moderno: tempo quase sempre passado, indicativo dum poeta volvido para as lembranças autobiográficas, no culto mórbido da saudade. Por isso, o saudosismo é outra marca de sua poesia: pode-se dizer que todos os poemas do Só, obra que mais de perto interessa, pois o resto ou é póstumo ou corresponde às primícias do poeta, tem como fulcro a saudade.
Mais importante que o tempo-saudade para aferir da modernidade de António Nobre é o tempo-duração, que já se vislumbra em sua poesia: em mais de um passo, o poeta fala do fluir irremediável do tempo e articula suas lembranças em dois planos pretéritos, como é o caso por exemplo de "António" ou da "Lusitânia no Bairro Latino", planos esses correspon-dentes à noção de que o tempo transcorre não em linha reta mas em ondas que abarcam simultaneamente o presente, o passado e mesmo o futuro.
Tudo isso revela um poeta moderno: poeta "inspirado", espontâneo, abriu caminho em Portugal para o reconhecimento da poesia como "ciência demoníaca", na esteira de Baudelaire, de cuja fascinante revolta não ficou totalmente alheio. A poesia de António Nobre respirava pureza e primitividade pouco frequentes, qualidades suficientes para abrir trilhos novos na poesia contemporânea e tornar-se prenúncio claro da deificação do acto poético, preconizado e realizado pelo grupo do Orpheu, especialmente por Mário de Sá-Carneiro, tão emotivo e hipersensível quanto o autor do Só. Criticamente, este último provoca menos vibração intelectual que Camilo Pessanha, mas, se nos dermos à leitura de sua poesia sem preocupações de ordem crítica, e sim com o intuito de conviver com a beleza que gera emoção estética, - então haverá poucos poetas portugueses que se lhe comparem.»
(In http://books.google.pt/books?id=xcQYSXj0xN0C&pg=PA214&lpg=PA214&dq=ant%C3%B3nio+nobre+massaud+mois%C3%A9s&source=bl&ots=mufX6d2Wys&sig=B2Qk97wXId0ww2R6MjgkizExhuo&hl=en&sa=X&ei=qXmNUJqOC9GwhAezu4HACg&ved=0CBkQ6AEwAA#v=onepage&q=ant%C3%B3nio%20nobre%20massaud%20mois%C3%A9s&f=false)

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