quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O nosso artista


«Considerem-se as duas figuras de leigos integradas no friso de eclesiásticos, no seu canto superior direito: tanto o homem do livro fechado como o rosto que a seu lado contraria a regra do espelho são certamente importantes na lógica dos painéis. Se o primeiro for Fernão Lopes que, nas duas primeiras partes da crónica interrompida de D. João I (o livro fechado que transporta debaixo do braço?), descreveu uma verdadeira revolução política medieval numa linguagem directa e enérgica sem paralelo na sua época, a sua inclusão pode reforçar o sentido familiar e político da charada global. Deve ter tido alguma familiaridade com D. João I, D. Duarte e D. Fernando, de quem foi sucessivamente secretário, e sentido na sua própria carne a sucessão de tragédias que se iniciou com a expedição de Tânger, uma vez que um dos seus filhos morreu no cativeiro norte-africano, ao lado do Infante Santo.
Os pontos de vista claramente políticos expressos na obra que deixou, não podem ter deixado de influenciar a sua vida, e o cargo de Cronista-mor e Guardião da Torre do Tombo (um antigo bastião do castelo de S. Jorge onde se guardavam os documentos) em que foi investido por D. Duarte no ano seguinte à morte de D. João I, manteve-se na sua posse durante toda a regência do infante D. Pedro. O seu afastamento do cargo, de que foi o primeiro titular, ocorre dois anos depois de Alfarrobeira, sendo substituído por Gomes Eanes de Zurara que termina, com a Crónica da Tomada de Ceuta (a terceira parte da crónica de D. João I), a narrativa do reinado de Boa Memória deixada incompleta pelo seu antecessor.
É muito possível que Fernão Lopes se tenha inspirado, para a sua vívida descrição da revolta popular de 1383 contra a regência de Leonor Teles, de que não se poderia certamente recordar, uma vez que não teria, por essa época, mais que três anos de idade, num outro levantamento contra a regência de uma segunda Leonor que, esse sim, deve ter testemunhado ao vivo nas ruas de Lisboa. A saber, a revolta contra a viúva de D. Duarte, em 1439, que colocou a regência nas mãos do infante D. Pedro. A ligação de Fernão Lopes aos governantes da casa de Avis que corporizaram as aspirações populares, parece evidente, não só nas palavras das suas crónicas, mas no próprio desenrolar da sua carreira.
A impressão que se destaca é pois a de que uma possível figuração nos painéis (sob traços fiéis ou apenas aproximados) do narrador da revolução de 1383 – vestido de castanho e transportando um livro fechado – funciona como um pólo político na proximidade do barrete vermelho (e gola castanha) do soldado da geração de Aljubarrota. Recordemos que a lógica dos painéis centrais aponta o par de soldados de couraça como representativos da geração anterior ao par que enverga as brigandinas e os tristes e amachucados barretes roxos emblemáticos da geração de Alfarrobeira, coroas adequadas às suas expressões amorfas e pouco inteligentes.»
(Lido em http://paineis.org/C09b.htm)

Sem comentários:

Enviar um comentário