terça-feira, 24 de abril de 2012

Camões é "power"


(Retrato de Camões por Fernão Gomes, na cópia de Luís de Resende)

De acordo com Massaud Moisés, «Camões é grande, dentro e fora dos quadros literários portugueses, por sua poesia. Esta divide-se em duas maneiras fundamentais, conforme as tendências predominantes ou em choque no século XVI: de um lado, a maneira medieval, tradicional, a "medida velha", expressa nas redondilhas; de outro, a maneira clássica, renascentista, a "medida nova", sub-dividida em lírica, vazada nos sonetos, odes, elegias, canções, éclogas, sextinas e oitavas, e em épica, nos Lusíadas (1572).Tendo permanecido viva no decorrer do século XVI, a poesia medieval de cunho popularesco ou folclórico, o lirismo tradicional exprime-se notadamente em redondilhas (nome genérico dos poemas formados do verso redondilha maior, isto é, de sete sílabas, ou redondilha menor, de cinco sílabas).Camões empresta ao velho popularismo ingénuo, o das cantigas de amigo, dimensões mais vastas, fruto de suas experiências pessoais e do singular talento que possui.
O poeta ultrapassa as limitações formais próprias das redondilhas e insufla-lhes uma problemática nova, que o exemplo da poesia amorosa de Petrarca e do Cancioneiro Geral de Resende, estruturada sobre antíteses e paradoxos, ajuda a compreender. Daí resultam quadros de aliciante beleza em torno de cenas da vida diária, protagonizadas, não raro, por alguma mulher do povo, a quem o poeta conheceria muito de perto. Quase que apenas compostas para durar o tempo de sua enunciação murmurante, essas redondilhas deixam no ar uma sonoridade e uma "atmosfera" que perduram indefinidamente, como ressonância dentro dum búzio. É o caso, por exemplo, da obra-prima em matéria de redondilha, começada com o verso "Descalça vai pera a fonte". Quando não, uma gravidade tensa, dramática, ocupa o lugar dessa jovialidade distendida, manifesto duma alegria de viver meio pagã. É o caso de "Sobolos rios que vão", ou "Babel e Sião": numa solenidade quase litúrgica, trágica, o poeta plasma em versos cuja cadência vai num crescendo sufocante, toda a sua angustiosa escalada para o plano das transcendências. Seguindo na esteira de Platão, o poeta considera-se "caído" no plano humano, o mundo "sensível", esmagado pelas "reminiscências" do mundo "inteligível", onde moram as "ideias", a verdadeira realidade, de que as coisas deste mundo são apenas lembranças ou sombras. Para alcançar o seu desígnio, Camões apela para o auxílio da Graça, "que dá saúde" (= salvação), mas o seu Deus não deve ser confundido com o Deus do Catolicismo. Tratar-se-ia duma espécie de "para além do Bem e do Mal", síntese dum absoluto estético-filosófico-religioso, atingido ou atingível directamente pela inteligência e a sensibilidade do poeta, sem qualquer mediação pré-estabelecida (isto é, religiões, sistemas filosóficos ou estéticos). Chegado a esse ponto, Camões transitava da poesia tradicional para a clássica.»

Note-se que este texto, extraído de A literatura portuguesa, é escrito de acordo com a norma brasileira do português.

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