terça-feira, 20 de novembro de 2012

"Um auto de Gil Vicente"

Um auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett
(1838)
Um auto de GV1
Um auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, enc. Luís Miguel Cintra, cenário e figurinos de Cristina Reis, Teatro da Cornucópia, 1996 (Luís Miguel Cintra e Márcia Breia), fot. Paulo Cintra e Laura Castro Caldas.
Escrita por João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854) em 1838 (entre 11 de junho e 10 de julho, como ele próprio esclareceu), a peça Um auto de Gil Vicente marcou a sua opção por uma dramaturgia nacional de inspiração romântica que, anos mais tarde, teria a sua mais elevada realização artística em Frei Luís de Sousa (1843). Garrett abandonava, assim, os seus juvenis esboços dramáticos de pendor neoclássico (Xerxes, 1818; Lucrécia, 1819; Mérope, 1819; Catão, 1821) e aventurava-se em matéria portuguesa, apresentando um drama histórico, em três atos, com a ação a decorrer na corte do rei D. Manuel I. Para celebrar a partida da Infanta D. Beatriz para Sabóia, onde casaria com Carlos III, Gil Vicente prepara a representação da peça Cortes de Júpiter e é em torno desse labor – que suscita o processo metateatral, do teatro dentro do teatro – que se desenrola a trama, insinuando os amores secretos entre a infanta e o poeta Bernardim Ribeiro. A peça de Garrett estreou-se nesse mesmo ano, a 15 de agosto, no Teatro da Rua dos Condes, em Lisboa, sob a direção de Émile Doux e com a jovem Emília das Neves no papel principal, mas só em 1841 seria dada à estampa.
Por uma Portaria Régia de 28 de setembro de 1836 (que decorria da vitória da revolução de setembro), Garrett foi incumbido por Passos Manuel, em nome da Rainha D. Maria II, de apresentar “um plano para a fundação e organização de um Teatro Nacional nesta capital, o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribu[isse] para a civilização e aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa”, o que necessariamente implicaria também a escrita de “dramas nacionais".
Um auto de Gil Vicente obedecia também a esse critério de escolher matéria nacional, com figuras históricas em momento de grandeza espiritual e artística do país, como foi o tempo e a corte de D. Manuel I. A peça integrava não apenas o Rei, a Infanta D. Beatriz, Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, mas convocava também uma “lenda” dos amores impossíveis entre D. Beatriz e o poeta que foi também autor da novela Saudades, mais conhecida pelas suas palavras iniciais “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”.

Emilia das Neves

 

 
Emília das Neves (1820-1883).
No enredo da peça, Garrett inventou que, com o apoio de Paula Vicente (filha de Gil Vicente e que secretamente também amava o poeta), Bernardim se disfarça de moura para num momento do espetáculo se aproximar da Infanta e dela se despedir. Sobre a intenção que o levou a escrever a peça, juntaria à 1.ª edição da peça (1841) a declaração: “O que eu tinha no coração e na cabeça – a restauração do nosso teatro – seu fundador Gil Vicente – seu primeiro protector el-rei D. Manuel – aquela grande época, aquela grande glória – de tudo isto se fez o drama. Não foi somente o teatro, a poesia portuguesa nasceu toda naquele tempo; criaram-na Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, engenhos de natureza tão parecida, mas que tão diversamente se moldaram.” (GARRETT 1966: 1324, 1325).
Para lá desse intuito patriótico na revisitação do passado, movia-o também um projeto de renovação teatral, como escreveu nessa mesma edição: “O drama de Gil Vicente que tomei para título deste não é um episódio, é o assunto mesmo do meu drama; é o ponto em que se enlaça e do qual se desenlaça depois a acção; por consequência a minha fábula, o meu enredo ficou até certo ponto obrigado. Mas eu não quis só fazer um drama, mas sim um drama de outro drama e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o teatro” (GARRETT 1966: 1326).»

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