«Filho natural dum estudante e duma moça do povo, nasceu em Coimbra, em 1867. Precisa-mente a 14 de Outubro de 1885, escreve seu primeiro poema: "Lúbrica". Ingressa na Faculdade de Direito e forma-se em 1891. Em 1889, colabora na revista O Intermezzo e num jornal de província (O Novo Tempo, de Mangualde). Formado, em 1894 parte para Macau como professor do ensino secundário, onde trava amizade com Venceslau de Morais. Também como este, orientaliza-se e contrai o vício do ópio. Em 1900, passa a Conservador do registo predial em Macau. Enquanto isso, vai publicando em jornais de províncias suas estranhas composições. Visitou Portugal mais de uma vez (uma delas entre 1905-1909 e a outra em 1915), para matar saudades e em tratamento de saúde: é nesta última estada que João de Castro Osório recolheu alguns dos poemas que Camilo sabia "de memória", e instou para que ele "transpusesse" outros para o papel. Assim, reuniu boa parte de sua produção poética. Roído pelo ópio, com nervos destrambalhados, faleceu em Macau, em 1926.
Alguns dos poemas colhidos por João de Castro Osório foram publicados por Luís de Montalvor na revista Centauro (1916) e mais adiante, acrescidos de outros, vieram a formar um volume, de título Clépsidra (1920), cuja ordenação obedeceu à vontade expressa do poeta, mas que só enfeixa parte de sua produção. Na edição de 1945, juntaram-se alguns inéditos e dispersos, mas não é tudo ainda, embora sua "obra completa" sempre venha a dar um magro volume: tendo os poemas "de memória", é de crer que vários deles não chegaram a ser escritos, ou melhor, transcritos. Em 1944, publicou-se um volume, China, com artigos vários de Camilo Pessanha acerca da cultura chinesa.
Diferindo essencialmente dos demais poetas do tempo, Camilo Pessanha enquadra-se de modo nítido, justo, na estética simbolista. Nele o Simbolismo se realiza em todas as suas características fundamentais. A obra poética de Camilo Pessanha se autentifica, em princípio, pelo alto sentido abstracto, vago, difuso, próprio de quem, por ser simbolista nato e possuir um temperamento ultra-sensível, se sente inadaptado à existência, que só lhe causa desengano e dor. O poeta, contudo, deseja fugir, aplacar a dor que a pouco e pouco se transmuta em Dor, mas sabe que a Dor é, paradoxalmente, tudo quanto possui, pois, "sem ela o coração é quase nada", como confessa, no primeiro soneto de "Caminho", a ponto de sentir saudades desta dor que em vão procura "do peito afugentar bem rudemente". Cria-se uma ambivalência de sentimentos que constitui o cerne de sua poesia. Quando tal ambivalência se alarga, deparamo-nos com um poeta ansioso por "Deslizar sem ruído, / No chão sumir-se, como faz um verme", isto é, regressar a um estado de inércia que, prolongado, significa restabelecer condições de bem-estar peculiares a um estágio anterior ao nascimento, num limbo ou numa espécie de não-vida. Qualquer coisa como saudade de haver pertencido a um diverso tipo de realidade, descarnado de sua condição humana e reduzido então a um desejo vago, ou ser informe antes de vir ao mundo. Ou, ainda, desejo búdico dum nirvana para aplacar um doloroso sentimento schopenhaueriano da existência.
Por outro lado, a ânsia do inquietante certeza de continuar amanhã, do futuro, traz-lhe a preso à perturbadora presença da Dor. Nasce daí a abulia, a doença da vontade, que resulta de tudo já existir no poeta como íntima e arraigada emoção que não se exterioriza, ou se exterioriza, como desalento perante qualquer gesto concreto, prático, ao aderir à realidade que só angústia e estranheza lhe causa. Em consequência, brota um denso pessimismo sem melancolia, subtil, despido de angústia ou de estertores, fruto de profundo sentimento de decadência, de diluição. Esboroa-se o mundo em derredor, porque o "eu" do poeta se vai desmanchando aos poucos, à medida que os dias passam e,aumenta a sensação de inócuo e de inutilidade cósmica. A própria vida é inútil. O poeta, dotado de agudíssima sensibilidade, que se conhece e se auto-analisa, só encontra motivo de ser naquilo de que foge tanto: a Dor, causa e efeito, princípio e fim.
É, por isso, o poeta da Dor refinadamente subtilizada e diafanizada, a ponto de se tornar ídolo: "Porque a dor, esta falta d`harmonia (...) Sem ela o coração é quase nada".
O processo, desenvolvido até o limite, arrasta-o a uma espécie de delírio próximo da loucura, provocando-lhe a íntima suspeita de que tudo é caos e alogicidade.
Estranheza total que o convida a introjetar-se mais, perder-se e refugiar-se num monólogo que sabe anódino ou oriundo da incrível Dor de existir sem remédio, sem causa, sem justificativa.
Trazendo para a Literatura Portuguesa tal subtileza, requintadamente artística mas vivêncialmente humana, Camilo Pessanha reflectia com nitidez aquele clima de degenerescência geral na Europa, de que o Simbolismo e o Decadentismo eram as mais evidentes expressões literárias. Ao mesmo tempo, sua poesia encontra motivos em seu caso pessoal, o que faz acreditar ter o "exílio" (os vários anos do Oriente) exercido enorme influência em seu espírito, tanto mais próximo da atmosfera simbolista do tempo quanto mais afastado e mais só se encontrava o poeta. Dir-se-ia que Camilo Pessanha seria um poeta simbolista mesmo sem o Simbolismo, tal a purificação que alcançou operar numa poesia, como a Portuguesa, tirada ao declamatório e ao sentimentalismo piegas, quando não ao formalismo vazio de tantos neoclássicos. Entenda-se, porém, que se trata dum poeta medularmente português: doutra forma não compreenderemos o núcleo sentimentalmente filial da sua poesia, próprio de um hipersensível ansioso de aconchego materno, mas que o recusa por sentir-lhe a força e o império, e porque deseja cultivar a Dor, com prazer masoquista. Se colocarmos de um lado a Pátria, a Mãe, a infância e o perene sentimento de saudade, e de outro, o culto da Dor, teremos estabelecido a equação tipicamente Portuguesa do dilacerante drama de Camilo Pessanha. Já no poema "Inscrição", que serve de pórtico ao volume, se patenteia a insuperável dependência do poeta para com tudo quanto lhe informara o espírito e a sensibilidade: "Eu vi a luz em um país perdido." Se entendermos por "país perdido" mais do que Portugal, isto é, a infância conjugada a um sentimento de pátria, não à coisa pátria, e despido o adjectivo "perdido" de qualquer ideia polémica, - patenteia-se às claras o fulcro dramático da poesia de Camilo Pessanha.
Doutro lado, seus recursos de linguagem, traduzindo o desmoronamento do "eu" e do Cosmos, liquefazem-se, simplificam-se, despem-se da lógica tradicional e revestem uma sintaxe psi cológica, interior, musical, de quem elabora o poema por automatismo, à procura das expressões capazes de sugerir tudo quanto lhe vai na alma. A palavra, nele, torna-se transparente, reduzida aos sons e aderida à própria sensação, o que impede o julgamento preciso e directo de seu conteúdo. Tudo isso, mais o à-vontade, acompanhado de surpreendentes alianças gramaticais em apoio do enquadramento de intuições nascidas em planos diferentes (presente, passado, futuro; a cor, a música, o olfacto, etc.), formando sinestesias contínuas e subtis, fazem dele um dos Maiores poetas da Literatura Portuguesa, e permitem ver em sua poesia alguns dos caminhos perseguidos por um Ferrando Pessoa ou um Mário de Sá-Carneiro. Servem como exemplo relativo a este último os versos já referidos em que Camilo Pessanha fala de seguir "a medo na aresta do futuro"; quanto a Fernando Pessoa, que lhe reconheceu o influxo sobre sua personalidade, e conhecia-lhe versos de cor, leia-se o seguinte: Porque o melhor, enfim É não ouvir nem ver... Passarem sobre mim E nada me doer! Cessai de cogitar, o abismo não sondeis. Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
Pelo que aí vai, compreende-se perfeitamente que o justo e merecido prestígio de Camilo Pessanha tenha aumentado de uns anos para cá, no conceito da crítica e dos leitores: em oposição a António Nobre, é um poeta cuja profundidade só se oferece lentamente ao leitor, exigindo-lhe paciência de espeleólogo. Doutra forma, perde-se tudo quanto ele pode revelar, ao contrário de António Nobre, que logo nos contagia com a transbordante carga emocional de sua poesia, mas, por isso mesmo, cujo fascínio logo desaparece. A dificuldade que Camilo Pessanha põe ao acesso em sua intimidade significa a doacção duma poesia autêntica e original, que perdura longamente no espírito do leitor. Assim é o grande poeta, assim é Camilo Pessanha.»
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Editora Cultrix, São Paulo
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