terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Plano de leitura imaginário, feito por um aluno inexistente

 


Projeto individual de leitura imaginário de uma obra inexistente, por um aluno inventado

  • A minha escolha desta obra prende-se com as minhas preferências pessoais: com efeito, li dois livros deste autor que me marcaram profundamente, ****** ** ****** e ** ******** ** ***. Em seguida, li um livro de contos que não apreciei. No entanto, quando deparei com esta obra, publicada em 2000, decidi voltar a arriscar. Dado que este projeto se enquadra na disciplina de literatura, fiz uma breve pesquisa, tendo concluído que ***** ******** pertence ao cânone, sendo, inclusivamente, estudado em várias universidades.
  • O autor nasceu no ***** em 1954, mas foi para ********** aos 5 anos. Essa dupla pertença é muito importante para a obra, que oscila entre estes dois eixos geográficos, civilizacionais e políticos. Escreveu vários livros, de entre os quais ****** ** ****** e ** ******** ** ***. Recebeu vários prémios importantes, destacando- se, em 1989, o ****** ****. ** ******** ** *** foi adaptado para o cinema, tendo obtido grande sucesso.
  • É difícil fazer um relatório faseado de leitura de uma obra que se leu em três dias. Posso, porém, indicar quais as minhas impressões de leitura ao longo desse breve período.
  • Inicialmente, fiquei perplexo com a temática da obra. Trata-se, aparentemente, de um livro de aventuras, talvez inspirado na obra de Conan Doyle, com um detetive jovem, abastado, desligado de laços familiares e assaz seguro de si. Todavia, e ao contrário do que sucede perante um detetive como Sherlock Holmes, o leitor teme que a qualquer momento a confiança do protagonista seja abalada, pelo que a leitura da obra se revela um pouco inquietante. Ora, essa inquietude é uma das caraterísticas marcantes da obra de ***** ******** e causa no leitor um efeito de expectativa que o leva a querer desvendar rapidamente o mistério.
  • Em traços gerais, trata-se de um jovem que, por força do rapto dos pais, é repatriado para Inglaterra, onde frequenta as melhoras escolas. Confortavelmente instalado em Londres, e firmemente decidido a prosseguir uma carreira de detetive, cedo se inicia na melhor sociedade londrina, sendo rapidamente reconhecido como um dos seus. É aí que conhece ΩΩΩ, uma jovem determinada cuja atenção cresce na medida do reconhecimento público de ффф. Lentamente, os dois jovens aproximam-se. Como frequentemente sucede com as personagens masculinas de ***** ********, ффф é passivo face aos avanços de ΩΩΩ. Pouco antes de se casar com sir Cecil, num momento de aproximação, ффф pressente a inesperada fragilidade de ΩΩΩ, que decorre do facto de ser órfã. Desde o início da leitura que o leitor se questionava por que motivo, sendo detetive, ффф não se dedicava a deslindar o mistério que envolvia o rapto dos pais. É só após o estabelecimento da sua carreira que ocorre a primeira de várias analepses, em que o protagonista conta a sua infância em Xangai. Dir-se-ia que ***** ******** abandona a matriz (ou paródia) dos livros de detetives para adotar a matriz dos livros de espionagem. A partir desse momento, a I guerra mundial deixa de ser apenas uma ameaça, a que veladamente se referem os londrinos, para ter uma presença cada vez mais marcante. Os seus primórdios, com a temática da responsabilidade britânica na questão do ópio. E – em apontamentos inesperadamente crus no final do livro – a sua realidade física, a mortalidade e sofrimento que provoca, a igualdade do homem perante a morte, seja ele chinês ou japonês. Ainda assim, o protagonista não abandona a sua pose algo distante, de detetive dos anos 30, que a tudo escapa incólume. Tendo deslindado o mistério do rapto dos pais, tendo destrinçado o novelo das suas recordações de infância, tendo desmistificado a origem da sua prosperidade, ффф é um herói masculino típico de ***** ********, tão incapaz de amar a(s) mulher(es) que o atraem como de compreender as implicações políticas do mundo que o rodeia. Escapar incólume tem destas contrapartidas.
  • O título da obra, ****** ****** ******, contraria a impressão inicial de que se trataria de um texto escrito “à maneira de” Arthur Conan Doyle, uma vez que remete para a orfandade do protagonista. O facto de a forma verbal se encontrar no pretérito imperfeito sugere que essa condição pode, de algum modo, inverter-se – o que não é verosímil. A circunstância de estar na primeira pessoa da plural implica mais do que um órfão, incluindo assim no centro da narrativa outras personagens que sofram dessa falha: ΩΩΩ e ∂∂∂, a órfã que ффф adota. Efetivamente, a obra quase conclui com a afirmação «Mas, para os que são como nós, o nosso destino é enfrentar o mundo como órfãos, perseguindo durante longos anos as sombras de pais desaparecidos.»
  • Nesta como noutras obras, ***** ******** tem um estilo despojado. Há poucas figuras de estilo e poucos adjectivos e as frases são relativamente curtas e sincopadas. Os seus livros marcam pela estrutura, onde predominam as analepses. Pela forma gradual como o psiquismo das personagens é desvendado. E pelos ambientes que recria: a Londres e a Xangai de antes da guerra, as instituições de ensino e a rede de relações que aí se criavam, a vivência britânica colonial, a teia de influências institucionais internacionais, Xangai em guerra. Ora, apesar de ффф manter distância face ao mundo «real» que o rodeia, a sua investigação leva-o a percorrer espaços nos quais nunca penetraria. É assim que somos confrontados com a descrição do tenente Chow (que o detetive virá a corroborar na sua travessia até às linhas inimigas: 

  •    «O senhor não acreditaria que seres humanos pudessem viver daquela maneira. É como um formigueiro. Aquelas casas destinavam-se aos mais pobres dos pobres. Casas com divisões minúsculas, filas e filas delas, costas com costas. Uma coelheira. Se olhar com atenção, pode ver as vielas. Pequenos becos apenas com largura suficiente para as pessoas entrarem nas suas casas. Nas traseiras, as casas nem sequer têm janelas. Os quartos desse lado são buracos pretos, de costas para as casas de trás. Desculpe, estou a dizer-lhe isto por uma boa razão, como verá. Fizeram-se as divisões pequenas porque eram para os pobres. Houve tempo em que seis ou sete pessoas partilhavam um quarto destes. Depois, com o passar dos anos, as famílias foram obrigadas construir divisórias, mesmo dentro desses minúsculos quartos, para dividirem a renda com outra família. E, se nem mesmo assim conseguiam pagar aos senhorios, dividiam ainda mais os quartos. Lembro-me de ver pequenos armários pretos divididos quatro vezes, cada divisão com uma família dentro. Não acredita nisto, M. ффф, que seres humanos possam viver nestas condições?»
  • Apesar da linearidade e do despojamento desta descrição, da ausência de recursos expressivos, o crescendo de violência implícita impressiona tanto ou mais do que qualquer qualificativo, qualquer comentário que o narrador pudesse fazer.
  • Após uma breve pesquisa acerca desta obra, deparei com o seguinte texto(responsabilidade editorial da Companhia das Letras):

  • «Envolvente, a narrativa ganha ritmo de trama policial na voz controlada e minuciosa do protagonista. A aparente frieza do relato, entretanto, não esconde o que ффф não quer ou não pode ver: que sua memória, sua visão de mundo, não estão imunes às tragédias da infância. No vaivém das reminiscências, o lirismo colide dolorosamente com a matéria dura da realidade.»
  • Por diversas razões, este livro constituiu uma boa experiência de leitura. Para começar, reconciliou-me com um autor que apreciava, mas de que li um livro dececionante. Não posso afirmar que esta obra atinja a excelência de ****** ** ****** e de ** ******** ** ***, mas é um bom livro, cuja leitura me agradou (“delectare”, um dos objetivos da experiência literária, de acordo com os autores citados na aula de literatura), me instruiu (“docere”) e me comoveu (“movere”). Concretizando, achei muito distrativa a descrição dos ambientes da alta sociedade britânica em Londres e em Xangai e as alusões discretas a uma leitura de entretenimento (policiais, espionagem). Fiquei mais elucidado relativamente à vivência para-colonial e aos pormenores da I guerra mundial. A forma como o protagonista masculino está sempre a um passo de uma vivência plena e como, no último minuto, recua e se acomoda ao vazio afetivo comoveu-me tanto como a capacidade de abnegação de Diane.

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