Lido em Entre Fialho e Nemésio, Óscar Lopes. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1987: «O Gebo e a Sombra" destaca-se bem entre toda a obra de Raul Brandão pelo consumado da sua estrutura, que aliás utiliza e refunde tipos humanos da Farsa ou de Os Pobres. Em vez de uma justaposição de fala-sós, estamos aqui perante uma linha bem una de acção, acidentada por bruscas mutações ou, como dizem as poéticas clássicas, de peripécias surpreendentes e todavia integráveis numa lógica significativa e verosímil: no primeiro acto, o Gebo e a nora, Sofia, escondem à mulher dele que o filho, há vários anos ausente, faz uma vida de ladrão e presidiário, e este último, João, aparece ao velho no desfecho; no segundo acto, João, apesar da resistência de Sofia, rouba a mala com dinheiro que o velho trouxera do mísero emprego, onde, sabe-se depois, só por piedade o mantêm; no terceiro, o Gebo entrega-se à polícia como se fosse o ladrão; no quarto acto, vemo-lo regressar do presídio, depois de cumprida a pena, desmoralizado, e partir com o filho para a vadiagem. A velha exige torturantemente, nos primeiros actos, que o Gebo a iluda, que lhe minta, lhe inspire sonhos acerca do filho, e essa tortura de um velho exausto, consumido de preocupações e troçado pelo rapazio, renova-se a cada incoerência e a cada lapso nas esperanças que inventa ao longo do primeiro acto; no entanto a velha acaba por confessar, no quarto acto, que tudo sabia desde o princípio, mas não podia prescindir do sonho: "Há mentiras que precisam de gritos e de alguém que as defenda até ao último extremo." Como tema central, além do da mentira necessária, há estoutro, formulado numa pergunta de Sofia: "Neste mundo atroz, neste mundo onde não há nada a esperar nem piedadede nem justiça, só os desgraçados é que têm de cumprir o seu dever?" As soluções polares, que o gebo adopta sucessivamente na peça, estão na sua essência pura representadas por Sofia e João. Sofia sutenta o postulado religioso ("Há talvez outra coisa maior que eu não conheço mas pressinto.") de uma sobrevivência e sanção sobrenaturais; João representa a solução anarquista do egoísmo individual sem peias morais, segundo o critério de que os oprimidos resignados e justos não passam afinal de almas mortas: "Antes viver num espanto e depois morrer!" É claro que a exigência da mentira dourada por parte da mulher de gebo está na base, afinal bem comezinha e sublimadamente egoísta, dessoutro sonho, mais abstracto, a religião de Sofia. Entre as duas soluções aparentemente definitivas, o ódio invejoso de Candidinha para com os que lhe dão esmola ("Até fico doente quando as coisas lhe correm bem!") e as veleidades do "artista" Chamiço, pobre músico de feira, vêm adensar ainda mais a tensão dramática irresolúvel de uma miséria que (ideia persistente do autor) já não pode crer nas consolações religiosas tradicionais, nem por outro lado se satisfaz com um individualismo extremo, ou anarquista.» (pp. 349-350)
Em seguida, Óscar Lopes faz uma breve menção a uma das temáticas mais importantes em Raul Brandão, e também em O Gebo e a Sombra: «(...) a da pergunta metafísica sobre o "para quê" do sofrimento.» (p. 350). Em seguida , afirma «A personagem-tipo deste egoísmo é a Candidinha (..) A sua tragédia de desgraça pobre e sem escrúpulos, cujo maquiavelismo se frustra perante os obstáculos insuperáveis da miséria (...)" (p. 366).